É preciso resistir aos líderes trovejantes que não respeitam o Acordo de Paris, diz ex-ministra francesa

Chefes de Estado que ignoram as questões ecológicas podem gerar desgastes irreversíveis, diz Ségolène Royal

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Maria de França | La Règle du Jeu
Paris

Para Ségolène Royal, ex-ministra do Meio Ambiente, Energia e Mar da França e atualmente uma das responsáveis pela realização da conferência climática da ONU, Bolsonaro "deu rédeas livres àqueles que lucram com o desmatamento" e que ele não está respeitando o Acordo de Paris.

Ela lamenta que à época da assinatura do Acordo não tenha sido aprovada a criação de um conselho que teria permitido impor sanções aos países que não respeitassem. O presidente brasileiro, avalia, está deixando o agronegócio sobrepujar a preservação do ambiente e agredindo populações indígenas e a biodiversidade. "Ele fala o que seus financiadores querem ouvir e não se importa com o que vai acontecer mais tarde."

"O que é deplorável com esses líderes trovejantes que chegam à chefia de Estado e ignoram as questões ecológicas, que pregam o discurso do 'eu em primeiro lugar', é que eles provocam desgastes enormes e às vezes irreversíveis."

Ela aprova a ideia proposta por Macron de frear as relações entre União Europeia e Mercosul.  "Após as preocupações geradas pelo Ceta (acordo entre União Europeia e Canadá), tornou-se impossível ignorar o impacto de um novo tratado que abriria a França às importações agrícolas com menos regulamentação ambiental.

Ségolène Royal foi ministra do Meio Ambiente, Energia e Mar da França e é atualmente embaixadora encarregada da negociação internacional para os polos ártico e antártico - Christophe Archambault/AFP

A Amazônia está sendo assolada por incêndios devastadores. Por que isso é tão grave?

As florestas, assim como os oceanos, são o que chamamos de sumidouros naturais de carbono. Quando a floresta queima, não apenas é liberado gás carbônico devido aos incêndios, como o encolhimento da floresta reduz obrigatoriamente seu papel de oxigenação do planeta. Sem falar na destruição da biodiversidade.

O presidente brasileiro declarou primeiramente que as ONGs seriam responsáveis por “incêndios criminosos” porque ele teria cortado as subvenções a essas ONGs. Em seu discurso transmitido pela televisão na noite de sexta-feira, ele descartou a questão do desmatamento e, ao mesmo tempo, atribuiu o que está acontecendo a uma fatalidade. Segundo ele, os incêndios são comuns nesta época do ano. É verdade que o que está acontecendo é inevitável?

Não é inevitável, nem no que diz respeito às origens das queimadas nem sua amplitude. É é sua amplitude que é especialmente preocupante hoje.

As declarações de Bolsonaro com relação às ONGs são escandalosas porque é evidente que, pelo contrário, os incêndios são frutos da ação criminal daqueles que desmatam a floresta. É sabido que as queimadas permitem o desmatamento muito mais rápido e que é mais fácil obter autorizações de desmate a posteriori para as grandes culturas intensivas. É um processo criminal, um ecocídio que infelizmente é muito clássico.

Ao conceder as autorizações de derrubada da floresta, Bolsonaro também deu rédeas livres àqueles que lucram com o desmatamento. É evidentemente ele o incendiário nesta história.

A senhora é uma das arquitetas da COP 21 e sem dúvida a maior embaixadora da conferência. O presidente brasileiro primeiro declarou que queria tirar o Brasil do Acordo de Paris, mas depois recuou. Bolsonaro estaria finalmente respeitando os compromissos assumidos no Acordo?

Não os está respeitando por enquanto. Faz parte do Acordo de Paris, por exemplo, a proibição do desmatamento e o aumento das energias renováveis. É crucial controlar a implementação do Acordo em cada um dos países signatários. Precisamos confrontar o chamado “efeito Trump”, impedir o alastramento das ideias de um presidente americano que afirma querer sair do Acordo de Paris e que questiona o aquecimento climático.

Temos agora como interlocutores líderes muito diferentes daqueles que assinaram o Acordo. Em lugar de Barack Obama temos Donald Trump; no lugar de Dilma Roussef, temos Bolsonaro. Ainda bem que na época não fomos obrigados a tratar com os loucos desvairados de hoje; eles teriam sem dúvida derrubado a COP 21.

O atual ministro brasileiro do Meio Ambiente também declarou que as discussões sobre o aquecimento global são secundárias. Como fazer esses governantes enxergarem a razão?

Lamentavelmente, não existe nenhum conselho internacional de segurança do Meio Ambiente. Entre as propostas do Acordo de Paris estava a ideia da criação de um conselho que teria permitido impor sanções aos países que não respeitam o Acordo. Desse modo teríamos uma maneira de punir aqueles que ameaçam o restante do planeta. O desrespeito ao Acordo cria uma verdadeira crise de segurança planetária. E o que está acontecendo hoje traz de volta à ordem do dia a necessidade de criar esse conselho.

Bolsonaro diz que o Brasil preservou mais de 60% de sua vegetação nativa, deixando subentendido que o país não tem lição alguma a aprender com outros países que não fizeram o mesmo. Segundo ele, a motivação da maioria desses países, entre eles a França, seria política. É uma ideia compartilhada por muitas pessoas no Brasil. O que responder a isso? Como responder a esse medo –antigo, constante—de ingerência e invasão do território brasileiro?

Mas a Amazônia abrange nove países, um dos quais é a França, com a Guiana Francesa. E as florestas virgens, assim como o oceano, são os bens comuns da humanidade.

Temos portanto uma responsabilidade coletiva, não apenas para com os países da floresta amazônica mas também com os países que sofrem indiretamente as consequências da degradação.

Mas permita-me dizer que aqueles que destroem o meio ambiente arcarão com as consequências disso um dia. Fenômenos de seca e de calor extremo serão observados sem dúvida nos próximos meses. E o impacto será rápido para o Brasil, infelizmente.

Bolsonaro acusa Emmanuel Macron de ter uma visão “colonialista” da questão. Mas, como a senhora mesma lembrou, as questões ligadas à Amazônia também dizem respeito diretamente à França. Quais podem ser os impactos sobre a Guiana Francesa daquilo que está ocorrendo no Brasil hoje?

Apesar da grande área da Amazônia, os efeitos climáticos sempre são sentidos em outras regiões. Vale lembrar que o derretimento do gelo no polo Norte tem um impacto sobre o ressecamento do Sahel. Com a proximidade dos espaços amazônicos uns dos outros, o impacto é ainda maior e mais rápido.

Antes mesmo de sua eleição, já era sabido que Jair Bolsonaro tinha a Amazônia em sua mira. Apoiado pelo lobby do agronegócio, desde sua chegada ao poder ele implementou uma política de desconstrução das normas ambientais.

Os interesses do poderoso agronegócio brasileiro podem coexistir pacificamente com a defesa da fauna, da flora e das populações indígenas?

Não. Elas não podem coexistir. É uma verdadeira relação de força. O poder da indústria petrolífera e do agronegócio é considerável. A diversidade de plantas, de aves e sobretudo a sobrevivência das populações autóctones estão gravemente ameaçadas. É inevitável que ocorram catástrofes no Brasil. Só que, como isso não coincide com eleições, o presidente brasileiro pouco se importa. Ele fala o que seus financiadores querem ouvir e não se importa com o que vai acontecer mais tarde.

O que é deplorável com esses líderes trovejantes que chegam à chefia de Estado e ignoram as questões ecológicas, que pregam o discurso do “eu em primeiro lugar”, é que eles provocam desgastes enormes e às vezes irreversíveis.

Voltamos à necessidade de criar uma autoridade internacional superior que possa sancionar esses dirigentes tão perigosos.

Uma esperança é que a população acabe tomando consciência das consequências nefandas para a saúde e não volte a votar nesses líderes irresponsáveis. A democracia não funciona se os cidadãos não estiverem bem informados. E em matéria de ecologia, justamente, os cidadãos não têm recebido informações. Se eles soubessem, por exemplo, que os pesticidas prejudicam sua saúde, tomariam plena consciência do que está em jogo. E, quando tomam consciência, eles agem. Existe uma ligação direta entre a democracia, o direito à informação e a resistência à destruição do meio ambiente.

A senhora apoia a proposta de Emmanuel Macron de levar a questão da Amazônia à discussão do G7?

Sim, foi uma reação muito boa. Tem sido difícil incluir a questão climática na agenda. Utilizar o gancho de uma catástrofe ecológica atual para levar todos a ouvir a razão é um passo relevante.

Emmanuel Macron não era conhecido até agora como grande defensor ambiental. Seria isso uma virada em suas posições políticas?

É de qualquer maneira um grande avanço em relação à desintegração da política ecológica que, por não conseguir se fazer ouvir, levou à demissão de Nicolas Hulot.

Agora precisamos de um despertar real. A França tem um papel importante a cumprir. Somos o país da COP 21, os outros países do mundo esperam que Paris continue a exercer um papel essencial na questão climática e na questão da aplicação do Acordo de Paris ao nível mundial e ao nível europeu.

O que a senhora diria aos que afirmam que a política continua impotente diante dos lobbies?

Eu diria que, pelo contrário, muitas vitórias podem ser conquistadas. A luta ecológica é motivante. Em meu livro (“Ce que je peux enfin vous dire”), apresento uma dezena de lutas ecológicas difíceis. Entre elas, especialmente, a proibição do glifosato. Mas não pode haver um abrandamento posterior. Um ministro da Ecologia deve sempre ser solidário com o que foi feito antes dele. Nunca deve retroceder.

A França quer bloquear o acordo entre a UE e o Mercosul, mas a Alemanha acha que essa “não é a resposta apropriada”. Estados Unidos e China declararam que querem negociar acordos comerciais com o Brasil. Qual é sua posição a esse respeito?

A suspensão do Mercosul é uma boa iniciativa de Emmanuel Macron. Após as preocupações geradas pelo Ceta (acordo entre União Europeia e Canadá), tornou-se impossível ignorar o impacto de um novo tratado que abriria a França às importações agrícolas com menos regulamentação ambiental. É preciso entender que o Acordo de Paris chegou depois de iniciadas as negociações comerciais. Mas se impõe a elas. A França tem a obrigação especial de velar pelo cumprimento do Acordo de Paris.

Esta entrevista foi publicada simultaneamente na revista La Règle du Jeu;  tradução de Clara Allain 

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