Indígenas resistem a invasões e produzem alimentos para vendê-los em SP

ONG promove economia da floresta e faz ponte entre povos e empresas; lojas de SP vendem alimentos como chocolate, pimenta, farinha e óleos

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São Paulo

"Quem vai salvar a gente são eles. Não é a gente que vai salvar os índios. Só estamos ajudando o povo indígena", afirma Jefferson Straatmann, o Camarão, capoeirista, engenheiro de produção e coordenador de projetos da Instituto Socioambiental (ISA).

Camarão é um dos 160 profissionais do ISA, uma ONG que este ano completou 25 anos de trabalho na Amazônia e em outras regiões. O primeiro e até hoje principal objetivo dessa equipe é defender os territórios indígenas das invasões de madeireiros, plantadores de soja, criadores de gado e garimpeiros.

Segundo dados preliminares do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), nos nove primeiro meses do atual governo foram registradas 160 invasões em 153 áreas indígenas, o dobro do ano anterior.

"A economia da floresta sempre existiu, mas a questão é: quem ganha com isso?", questiona o engenheiro diante da proposta em estudo no governo de Jair Bolsonaro que prevê permitir a mineração em terras indígenas.

Mesmo diante dessa ofensiva, os povos indígenas continuam plantando e colhendo alimentos da floresta não apenas para a própria subsistência mas também para vender os excedentes e gerar renda.

"Nosso papel é fazer a conexão das comunidades com o mercado consumidor para a comercialização de produtos das terras indígenas com valor agregado para empresas parceiras", explica Staatmann.

As organizações comunitárias apoiadas pelo ISA desenvolvem relações comerciais com 75 lojas e restaurantes de todo o país e já contam com o apoio de 19 empresas nacionais e estrangeiras.

Entre elas estão Mercur e Firmenich (produção de borracha), Grupo Pão de Açúcar, Wickbold, Grupo Atala, Lush, Na´Kau e Soul Brasil. No final deste ano, a Osklen e as Havaianas iniciaram negociações para a aquisição da borracha nativa da região da Terra do Meio, no Pará.

Essas iniciativas provam que para explorar economicamente a Amazônia não é preciso transformar a floresta em pasto nem abrir crateras para garimpar riquezas no subsolo. É a emergência de uma economia do conhecimento da natureza em contraposição à economia de destruição, como aponta Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, em seu livro "Amazônia".

Os resultados dessas parcerias podem ser vistos nos supermercados e restaurantes de São Paulo. No Mercado Municipal de Pinheiros, na zona oeste, é possível montar uma cesta de final de ano só com produtos indígenas. No box Atá, do premiado chef Alex Atala, a grande atração é a pimenta jiquitaia Baniwa produzida pela Associação Indígena do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM).

"Além de ser altamente versátil, a pimenta é deliciosa, potente e não muito persistente. Conhecer essa pimenta é uma experiência cultural. Descobrir os nossos sabores e respeitá-los é cuidar da nossa biodiversidade", diz Atala, parceiro do ISA.

"Acabei de vender 480 potes. Faturamos mais de R$ 12 mil", comemora o índio Alfredo Baniwa, 39, professor da aldeia com licenciatura pela Universidade Federal do Amazonas que ajudou a criar a primeira Casa da Pimenta, na comunidade Tunui Cachoeira, em 2013. Na Escola Indígena Baniwa Coripaco, onde ele leciona, formam-se 52 indígenas no ensino médio neste ano.

Outro produto bastante procurado no Mercado de Pinheiros são os cogumelos desidratados produzidos pelo povo Yanomami. Só os índios da maior reserva indígena do país, no noroeste de Roraima, que ocupam uma área do tamanho de Portugal, são capazes de diferenciar os cogumelos comestíveis dos venenosos que crescem nos troncos apodrecidos da floresta.

É de lá também que vem o Chocolate Yoanomami, produzido com cacau selvagem colhido às margens do rio Uraricoera e lançado neste mês, em São Paulo, pelo índio Julio Ye´Kwana. 

Vários outros produtos, como o mel e os óleos de castanha-do-pará e de babaçu têm a marca Vem do Xingu, o Parque Nacional indígena criado pelos irmãos Villas-Boas no Mato Grosso. Vale experimentar também o preparado de bolo de babaçu com cacau, usado na merenda escolar.

"O desafio agora é tornar as comunidades mais protegidas nesse processo. Queremos aproximar mais empresas que respeitem as questões éticas, pagando valores justos, para ajudar a economia desses povos da floresta", conta Straatmann, antes de participar do grande almoço de confraternização de fim de ano do ISA nos jardins do casarão que a entidade ocupa no tradicional Colégio Sion, em São Paulo.

No encontro, a maioria era de jovens, mas havia também pioneiros do ISA como os antropólogos Beto Ricardo e André Vilas-Boas e o deputado constituinte Marcio Santilli, que já foi presidente do Incra. 

No início, o principal trabalho do ISA era garantir a demarcação das terras indígenas, prevista na Constituição de 1988, ao oferecer apoio às associações que já existiam nas comunidades. Pode-se dizer que o ISA, de 1994, é um filho da Constituinte que criou as áreas protegidas.

De dez anos para cá, com técnicas de manejo de florestas para conciliar o cultivo e o extrativismo, os líderes indígenas começaram a pedir apoio do ISA para comercializar seus produtos. Os excedentes deveriam gerar renda para comprar o que eles não tinham nas aldeias, como ferramentas, rádios, celulares, roupas e alguns alimentos.

A sobrevivência deles, quando os territórios não são invadidos, estão garantidos pela "dispensa viva" na mata, de onde tiram a comida.

Se não tivessem que estar constantemente em guerra contra os invasores para defender seus territórios, desde que os europeus por aqui aportaram, os 900 mil índios brasileiros divididos em 305 etnias, distribuídas por 723 áreas, onde falam 160 línguas diferentes, certamente já teriam construído uma economia bem mais pujante.

"Mas não dá para comparar os valores monetários urbanos com os dos povos da floresta, que embutem a preservação da mata no seu trabalho cotidiano, afastando os invasores", afirma o engenheiro.

"Precisamos dos índios para salvar o clima e os alimentos naturais, porque a água que irriga as plantações vem de lá. A agrobiodiversidade é que pode impedir as mudanças climáticas que ameaçam o mundo, e a sociedade precisa pagar por isso, mas muitos ainda pensam só em roubar as terras dos índios", afirma Straatmann, o Camarão.

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