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Folha Verão

O futuro do verão está nas mãos da diplomacia brasileira

Os diplomatas nos envergonham ao não reconhecer a importância dos oceanos para o clima

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Natalie Unterstell Ana Paula Prates

Ir à praia. Ato simples e definidor dos verões de boa parte dos brasileiros desde que nosso país é país.

Mesmo quem tem paúra de se dizer ambientalista vira um quando chega o verão. Ao pisar na areia, somos avaliadores da qualidade ambiental: verificamos se a praia e a água do mar estão limpas, se a biodiversidade presente é maior ou menor que no verão passado, se a isca de peixe está mais ou menos fresca do que o esperado.

Nós nos preparamos o ano inteiro para curtir nosso litoral no verão, ano atrás de ano. Esse nosso ritual está, no entanto, fadado a acabar ou pelo menos a sofrer drásticos ajustes. 

Alguns são imediatos: o petróleo que chegou à costa brasileira em 2019 em 11 estados brasileiros, 129 municípios e quase mil localidades, continuará afetando centenas de praias do Nordeste e Sudeste por décadas.

Isso porque mesmo que a qualidade das áreas atingidas já tenha aparentemente melhorado, os impactos a médio e longo prazo estão apenas começando a aparecer. Comunidades de pescadores e populações costeiras já são diretamente prejudicadas por conta disso. Sem falar nos seres marinhos.

Kitesurfistas durante final de tarde na praia de Barra Grande - Adriano Vizoni/Folhapress

Todo mundo ganha quando ambientes estão saudáveis —quando eles sofrem impactos, eles podem se regenerar, ainda que lentamente. Um exemplo são os manguezais, que funcionam como barreiras vivas e também como berçário para diversas espécies. Uma vez oleados, o melhor é monitorar e acompanhar sua regeneração do que cortar suas raízes sujas, o que os estaria condenando à morte. 

Outros ajustes no nosso dia a dia também serão importantes. Ondas de calor muito fortes começaram a se impor sobre nossas cidades costeiras nos últimos verões. Além disso, em outras cidades, eventos extremos se tornaram emergências, com deslizamentos destruindo propriedades e tirando vidas

No mar há uma mudança silenciosa e dramática em curso. Cientistas dão como praticamente certo que o oceano esquentou desde 1970 e absorveu mais de 90% do excesso de calor no sistema climático. O Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) publicou em setembro de 2019 um relatório especial sobre a relação dos oceanos com a mudança do clima, que apresentou dados alarmantes tanto para a saúde dos ecossistemas marinhos por conta do aquecimento e da acidificação quanto sobre os riscos em relação ao potencial deles seguirem atuando decisivamente para a regulação climática. 

Desde 1993, a taxa de aquecimento do oceano mais que dobrou. Por conta disso, as ondas de calor marítimas provavelmente dobraram de frequência desde 1982 e estão aumentando de intensidade. Para piorar, ao absorver mais CO2, o oceano passou por uma crescente acidificação da superfície, o que está causando a morte de um dos ecossistemas marinhos mais biodiversos e importantes do planeta, os recifes de coral. E a contínua perda de massa das geleiras e a expansão das águas termais está elevando o nível médio global do mar de modo preocupante. 

Ao longo do século 21, projeta-se que o oceano transite para condições sem precedentes, com o declínio de oxigênio e diminuição dos estoques pesqueiros. Prevê-se que as ondas de calor marinhas e os eventos extremos de El Niño e La Niña se tornem mais frequentes. 

Para o Brasil, estudos anteciparam que alguns dos nossos cartões postais, como a praia de Copacabana, poderão virar paisagens muito diferentes até o final do século em função do possível avanço do mar na linha da praia. As taxas e magnitudes dos impactos são menores em cenários com baixas emissões de gases de efeito estufa.

Por outro lado, os habitats costeiros e marinhos são o nosso melhor sistema de defesa natural na luta contra as mudanças climáticas, armazenando até cinco vezes mais carbono por hectare do que as florestas tropicais. Uma baleia viva por exemplo faz o serviço ambiental de mais de 35 mil árvores em relação a retirar CO2 da atmosfera. 

Por isso é tão importante de desenvolver, manter e fortalecer as ações e políticas públicas de conservação da biodiversidade marinha. Possuímos mais de 9.000 km de costa, a maior extensão de manguezais contínuos do planeta e os únicos ambientes recifais de todo o Atlântico Sul.

Nessa extensão temos uma riquíssima biodiversidade marinha, já resguardada em 26,3% de áreas protegidas na nossa Zona Econômica Exclusiva. Essa área de preservação precisa ser ampliada para que haja ambientes saudáveis e resilientes.

Nesse conjunto encontramos as mais badaladas paisagens costeiras e marinhas, como Lençóis Maranhenses, Jericoaquara, Fernando de Noronha, Costa dos Corais, Alcatrazes, Arraial do Cabo e o Parque Marinho de Abrolhos, parte mínima do majestoso Banco dos Abrolhos visitado todos os anos pelas baleias Jubartes.  

O oceano tem o potencial de ser uma das nossas ferramentas mais fortes contra as mudanças climáticas. Por isso, é inacreditável que o governo do Brasil ainda não tenha feito a conexão entre o oceano e o futuro comum.

Dos 161 compromissos nacionalmente determinados (conhecidos pela sigla NDC) no âmbito do Acordo de Paris, 70% incluem questões marinhas. O Brasil, infelizmente, é uma das 14 nações que ignora os oceanos em sua promessa climática.

Não bastasse isso, na COP 25, que ocorreu em Madri, a delegação brasileira fez obstrução política à inclusão de oceanos no segmento de alto nível e na primeira COP Azul da história. Nossa diplomacia parece ter ficado presa à mentalidade do Protocolo de Kyoto, de 1997, no qual os sistemas marinhos não eram formalmente reconhecidos. O Acordo de Paris, de 2015, incluiu explicitamente o oceano em seu texto. 

A diplomacia brasileira se apequenou, e nos envergonhou, ao recusar-se a apoiar o relatório especial do IPCC sobre oceanos e pedir exclusão do tema na agenda de trabalho do próximo ano. Desdenhou do fato de que muitos de nós que participamos da "marcha anual à praia" já somos impactados pelos efeitos do aquecimento global, além dos prejuízos e danos causados pelo petróleo, já considerado o maior desastre ambiental na nossa costa. 

Sem o oceano não há vida na terra. Tampouco há condições de se conter o aquecimento global em 1,5°C ou 2°C sem esses sumidouros. 

Sem oceano e praias saudáveis, perderemos não apenas pontos no PIB nacional, importante fonte de renda para pescadores e uma linha de defesa contra o aquecimento global. Perderemos também parte da nossa cultura, da nossa identidade, segurança alimentar, qualidade de vida e da nossa possibilidade de usufruir de lugares e ritos que tanto nos agradam.

Em 2020 estaremos às vésperas da Década do Oceano, definida pela ONU para o período de 2021 a 2030. Já passou da hora de cuidarmos ainda mais de nossos mares e praias. É hora do governo brasileiro conectar-se à realidade e reconhecer o potencial da economia azul.

Natalie Unterstell é mestre em políticas públicas; Ana Paula Prates é doutora em ecologia. Ambas são conselheiras da Liga das Mulheres pelos Oceanos  

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