Descrição de chapéu Coronavírus

Fumaça e Covid-19 pressionam sistema de saúde no Centro-Oeste

Médicos temem que procura por unidades de saúde em razão de problemas respiratórios ajude a propagar coronavírus

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Rio de Janeiro | República.org

Na tarde de quinta-feira (24), o médico Marcelo Maia, 67, estava em seu turno no Hospital Metropolitano de Várzea Grande (MT), referência estadual para o tratamento de casos graves da Covid-19, quando acompanhou a conversa de um paciente com a família em um tablet.

O diálogo, que contou com o apoio de uma psicóloga, deixou os familiares esperançosos. “Menos de meia hora depois ele desestabilizou e teve que ir para a UTI”, conta Maia, que também atende na emergência do Hospital Municipal de Cuiabá e na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Morada do Ouro, também na capital mato-grossense.

Casos como o que o médico presenciou são rotina na vida de profissionais da saúde desde o início da pandemia do coronavírus, em fevereiro. Agora, porém, o problema ganhou companhia: doenças respiratórias provocadas ou intensificadas pelas queimadas no Pantanal, na Amazônia e no cerrado.

“Estou há oito anos em Cuiabá, nunca vi tanta fumaça como agora. Essa fumaça traz consequências graves para a saúde das pessoas. A intoxicação é muito pesada”, afirma o médico, que contraiu Covid-19 em junho, ficou 20 dias afastado e perdeu dez quilos.

As máscaras usadas para prevenir a Covid-19 agora evitam também a fuligem que tem agravado os problemas respiratórios na cidade.

No último dia 15, Cuiabá registrou 738 ppm (partes por milhão) de monóxido de carbono, quando o máximo aceitável, segundo especialistas, são 50 ppm —os dados foram levantados pelo Lapis (Laboratório de Análise e Processamentos de Imagens de Satélite) a pedido do Uol.

Além do monóxido de carbono, a fumaça das queimadas carrega o chamado “material particulado”, um elemento ainda mais tóxico. Os efeitos na saúde da população são imediatos.

Apenas em Cuiabá, a capital mato-grossense, foram registrados 1.889 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e Síndromes Gripais (SG) de 14 a 19 de setembro, um aumento de 6,8% em relação à semana anterior. Os dados são do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Saúde de Cuiabá.

“A poluição de queima de biomassa é 75% material particulado fino”, explicou a epidemiologista Eliane Ignotti, da Unemat (Universidade do Estado do Mato Grosso). “A capacidade de penetração no sistema respiratório é grande. E uma parcela das partículas finas é formada por partículas ultrafinas que vão para a corrente sanguínea”, afirma Maia.

O material particulado emitido nas queimadas florestais atinge altas altitudes e é transportado por grandes distâncias, atingindo cidades a centenas de quilômetros.

A situação ocupou Maia e seus colegas em um momento em que eles continuam a gastar boa parte do tempo no hospital com os pacientes com Covid-19, apesar da redução de casos na capital matogrossense —foram 219 em 24 de setembro, contra 513 em 23 de julho, maior índice registrado em um único dia.

“O problema é que as pessoas vão sendo expostas ano após ano e começam a apresentar problemas que não são mais agudos. A pessoa passa a ser asmática para sempre. Começa a ter o efeito crônico”, afirma Ignotti.

De 1º de julho a 20 de setembro, foram 30,5 mil focos de calor distribuídos nos três biomas do estado (Amazônia, Pantanal e o cerrado), um aumento de 45% dos pontos de calor em relação aos meses de julho a setembro de 2019, quando foram detectados 21 mil focos. No mesmo período de 2018, foram registrados 11 mil focos, de acordo com um levantamento do Monitor de Queimadas, do Instituto Centro de Vida (ICV), ferramenta interativa que utiliza informações disponibilizadas pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

O médico Renan Souza Mancio, da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Morada do Ouro, que abrange o Grande CPA, uma das áreas mais populosas de Cuiabá, precisou aumentar sua carga horária de trabalho para atender pessoas afetadas pela fumaça.

“Os atendimentos aumentaram pelo menos 50%. O que está chegando bastante aqui são as crises asmáticas. Os asmáticos agudizados chegam em grande quantidade. Tenho atendido uma média de 15 a 20 pacientes por dia [em salas de urgência e emergência]. Um número bem considerável.”

Agora, os profissionais de saúde da região temem que pessoas com problemas respiratórios oriundos da fumaça ajudem a propagar o novo coronavírus.

“Essa procura por unidades de saúde provoca aglutinação. Mais pessoas circulando em ambientes propícios ao vírus ajuda na sua disseminação. É possível que mais para frente volte a subir o quadro da Covid-19”, afirma Mancio.

Para Marla Weihs, pesquisadora de Saúde Rural da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), a ameaça atinge principalmente as áreas rurais. A falta de unidades de saúde faz com que as famílias dessas regiões procurem atendimento nas cidades, o que as expõem à Covid-19.

“A família inteira fica exposta, volta e infecta a comunidade rural dela. A densidade populacional é menor, mas a relação com a vizinhança nas áreas rurais é muito forte.” Em Cuiabá, 49,4% dos leitos de UTI e 34% das vagas em enfermaria são ocupados hoje por moradores de fora da capital mato-grossense.

Até agora, segundo a pesquisadora, as estradas funcionaram como o grande vetor de disseminação do novo coronavírus. “Municípios mais próximos da BR163 [como Cuiabá, Várzea Grande e Rondonópolis] concentraram os casos inicialmente. Agora a pandemia começa a entrar no meio rural. Não são poucos casos. Principalmente no município de Alta Floresta. As populações rurais não têm acesso às unidades de saúde.”

Mato Grosso registrava, até as 14h15 da última sexta-feira (25), 119.718 casos de Covid-19, com 3.375 mortes.

Os médicos temem também que os problemas decorrentes da inalação de fumaça e a Covid-19 se “retroalimentam”.

“Se você já tem um pulmão doente, a Covid-19 faz a tempestade perfeita. A pessoa piora por dois motivos”, afirma o médico Emerson Ferreira Moreira, do Pronto Socorro Municipal de Corumbá, município localizado na fronteira do Mato Grosso do Sul com a Bolívia, região fortemente atingida pelas queimadas no Pantanal.

Para agravar ainda mais esse quadro, a coincidência do pico do “período do fogo” com o da pandemia dificulta o diagnóstico, segundo Moreira, já que os sintomas são semelhantes.

“Muitas pessoas que se arrastavam em casa com Covid-19 achavam que era asma. Isso atrasou a entrada delas no sistema de saúde. Quando a pessoa chegou, já estava muito doente”, diz. “A gente está vivendo quase uma zona de guerra. A gente está trabalhando com número alto de internações já há algum tempo. Eu converso com a pessoa num dia, ela recusa internação e no outro dia a pessoa levanta mal, quase morrendo. Pela cidade ser muito pequena, você vê pessoas muito próximas morrendo.”

Corumbá teve 3.838 casos de Covid-19 registrados até dia 23, com 122 mortes. O auge da pandemia ocorreu em 24 de agosto (97 casos). Ainda assim, a prefeitura aguarda a evolução da doença para saber se há uma estabilidade ou uma queda momentânea no número de casos. Em todo o estado do Mato Grosso do Sul, foram confirmados 67.196 casos, com 1.233 mortes, até o dia 24 de setembro.

Para Moreira, de Corumbá, diante dos desafios de médio e longo prazo para o sistema de saúde, é preciso trabalhar na conscientização e prevenção das doenças.

“Manter paciente em CTI [Centro de Terapia Intensiva] é muito caro. A gente tem que começar a trabalhar para as pessoas não adoecerem e, se isso acontecer, a gente tem que criar estratégias para que não fiquem [em estados] tão graves. Temos que ter uma estratégia de intervenção, de tratamento precoce, para que não precisem chegar ao respirador. Não é só a [questão] pulmonar, a pessoa fica hipotensa, precisa fazer diálise, tudo isso tem um custo.”


Série mostrará ação de servidores públicos contra a Covid-19

A reportagem publicada é a primeira de uma série que mostrará o envolvimento dos servidores públicos no combate à covid-19, o impacto da pandemia no dia a dia desses profissionais e as soluções que eles apresentam à sociedade brasileira para a superação dos desafios sanitários e econômicos trazidos pelo coronavírus.

Esta é uma parceria entre a Folha e a República.org, organização social, apartidária e não corporativa dedicada a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo. Com esse objetivo, em seus quatro anos de atividade, a República.org já apoiou mais de cem projetos, com foco em formação, reconhecimento de talentos e construção de redes de profissionais do serviço público.

É uma das organizações realizadoras do Prêmio Espírito Público, que reconhece profissionais do setor público que geram impacto positivo e transformam a vida dos brasileiros.

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