Descrição de chapéu desmatamento

ONG encontra fazendas envolvidas em 'Dia do fogo' e trabalho escravo na cadeia de megafrigoríficos

Greenpeace aponta problemas com fazendas fornecedoras da JBS e Marfrig, que negam relação direta

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São Paulo

Apuração conduzida pela ONG ambiental Greenpeace aponta que fazendas que estavam queimando no “dia do fogo”, no Pará, em agosto de 2019, integram a cadeia de produção dos dois maiores produtores de carne do mundo, a JBS e a Marfrig. O levantamento também indica que pelo menos um dos fornecedores indiretos da JBS já foi autuado por trabalho em condições análogas à escravidão.

Em 2019, fazendeiros teriam orquestrado, segundo investigações das polícias Civil e Federal, queimadas simultâneas, no dia 10 de agosto. A ação coordenada acabou conhecida como “dia do fogo”. Naquele mês, as queimadas no Pará aumentaram 1.923% em comparação com igual período de 2018, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Pouco antes de o evento completar um ano, a equipe do Greenpeace, com base nos dados de onde ocorreram queimadas de 2019, decidiu verificar o que aconteceu com as áreas incendiadas. Sobrevoou a região das queimadas e encontrou leiras, pilhas de material orgânico formadas por árvores derrubadas que ficam expostas, secando para posterior queima, e áreas de pastagem com gado.

As multas rarearam para as fazendas onde houve queimadas. As análises do Greenpeace identificaram 478 propriedades com fogo ativo no “dia do fogo”, das quais 207 registraram queima em área de floresta nos dias 10 e 11 de agosto de 2019. Só 5,7% receberam autuações ambientais.

Essa investigação do Greenpeace, à qual a Folha teve acesso, aponta relação, ainda que indireta, entre grandes frigoríficos do Brasil e algumas das fazendas que queimavam em agosto do ano passado.

A partir de trabalho em campo e do cruzamento de dados disponíveis publicamente, o Greenpeace chegou às fazendas São José, em São Félix do Xingu, Bacuri e Santa Rosa, ambas em Altamira. As três, segundo a ONG, tiveram focos de queimadas durante o período do “dia do fogo”.

A fazenda São José, mesmo com os focos de calor na data em questão, não teve registros de fogo em 2020 e não tem multas nem embargos associados. Ela forneceu gado diretamente à JBS (180 animais) e à Marfrig (522 animais) pelo menos em 2019 e 2020.

Imagem de satélite apontam focos de queimada na fazenda São José, fornecedora direta da JBS e que também fornecia para a Marfrig
Imagem de satélite apontam focos de queimada na fazenda São José, fornecedora direta da JBS e que também fornecia para a Marfrig - Greenpeace

A investigação aponta que o dono da propriedade tem em seu nome multas e embargos por desmatamento novalor total de R$ 955 mil, mas relacionadas a uma outra fazenda, chamada Matão, que está em nome de sua mãe e que e divide cerca com a São José —o que, para o Greenpeace, indica a possibilidade de "lavagem de gado" entre as duas propriedades.

“Observamos no sobrevoo que a maioria dos bois nessas duas fazendas, quando você olha como um todo, estavam na área embargada, que havia sido desmatada na fazenda Matão. E vimos porteiras que davam acesso de uma fazenda para a outra, e não conseguimos achar indícios de que a fazenda Matão comercialize animais”, afirma Rômulo Batista, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil.

Já a fazenda Bacuri, que, apesar de estar parcialmente embargada, teve queimadas na área de embargo e de floresta em agosto de 2019 e tem mais de R$ 2 milhões em multas, não fornece diretamente à JBS. Mas, em 2020, forneceu gado para outras fazendas que, em seguida, direcionaram rebanho à fazenda Porangaí, em Xinguara, a qual, por sua vez, destinou animais para a planta frigorífica de Marabá da JBS.

Imagem de satélite aponta os pontos de fogo em diferentes momentos na fazenda Bacuri, no Pará
Imagem de satélite aponta os pontos de fogo em diferentes momentos na fazenda Bacuri, no Pará - Greenpeace

A fazenda Turmalina, que também em 2020 destinou cabeças de boi para a fazenda Porangaí, chamou a atenção da ONG por outro motivo: seu proprietário, Marcos Antônio Cândido de Lucena, consta na lista suja de trabalho escravo por fatos relacionados a outra propriedade sua, a fazenda Morro Alto, em São Geraldo do Araguaia. A lista produzida pelo Ministério da Economia aponta que Lucena submeteu sete pessoas a condições análogas à escravidão.

No caso da fazenda Santa Rosa, além de área embargada, seu proprietário tem mais de R$ 5 milhões em multas. Foram mais mil hectares desmatados de 2008 a 2019, e registro de queimadas na propriedade do final de julho às primeiras duas semanas de agosto de 2019.

A investigação do Greenpeace detectou movimentação de bois entre as fazendas Santa Rosa e Serra Azul, em Cumaru do Norte, em abril de 2019. No fim julho, a Serra Azul forneceu gado para a fazenda São Sebastião, e em setembro e outubro para a fazenda Maanaim, ambas fornecedoras diretas da JBS.

Dessa forma, houve comprometimento indireto da cadeia de produção da planta frigorífica da JBS em Santana do Araguaia. A carne relacionada ao local, segundo a análise da ONG, chegou a ser exportada para Hong Kong.

Imagens de satélite apontam pontos de fogo na fazenda Santa Rosa, no Pará
Imagens de satélite apontam pontos de fogo na fazenda Santa Rosa, no Pará - Greenpeace

Eventuais problemas na cadeia produtiva podem ter impactos econômicos, em um cenário em que a responsabilidade ambiental é cobrada por investidores, governos estrangeiros e pelo próprio mercado financeiro. Recentemente, a Nordea Asset Management excluiu ações do JBS de seus fundos, e analistas do banco HSBC alertaram investidores para a falta de solução da empresa e a diculdade tecnológica para monitorar a cadeia.

Desta vez, a ParknShop, uma das maiores redes de supermercados de Hong Kong, afirmou, segundo o Greenpeace, tinha comprado carne da JBS e declsrou que mudaria de fornecedor, após o braço local da ONG notificar varejistas sobre o que chamam de contaminação da cadeia por desmatamento. A Folha tentou contato com a ParknShop, mas, até a publicação desta reportagem, não recebeu resposta.

Procurados pela Folha, os frigoríficos afirmaram que as fazendas que vendem diretamente às empresas cumprem os critérios de responsabilidade ambiental que elas exigem, e a Marfrig acrescentou que a fazenda São José, em São Félix do Xingu, não é mais sua fornecedora.

"Há alguns anos essas empresas estão com um esforço de rastrear a cadeia produtiva, mas se esquecem que ela é longa, passa por dois, três, cinco fazendas, e essas não entram no rastreamento", diz Batista.

O porta-voz do Greenpeace afirma que não falta tecnologia para rastrear a cadeia toda. "A obrigação de não comercializar produto oriundo de área desmatada quem assumiu foram os frigoríficos. Já passou do momento de ficar dando a mesma desculpa", afirma.

Desde 2009, os maiores frigoríficos do país se comprometaram, através de TACs (Termos de Ajuste de Conduta) assinados junto ao MPF (Ministério Público Federal), a não adquirir gado de fazendas ligadas a ilícitos ambientais e de propriedades relacionadas a trabalho escravo ou sobrepostas a terras indígenas ou unidades de conservação.

Ainda assim, nenhum frigorífico ou empresa do varejo consegue assegurar que a sua carne tenha sido produzida sem passagem por área de desmate ilegal, como apontou o procurador Daniel Azeredo ao apresentar recentes auditorias relacionadas à cadeia da carne no Pará. Fornecedores indiretos, de maneira geral, não controlam o gado desde o nascimento, passando pela engorda até o abate.

Os números têm melhorado —o percentual de gado ligado à JBS com evidência de irregularidade caiu de 19% para 8,3% em 2019, segundo auditoria do MPF—, mas houve mudança nos parâmetros de análise.

Deixaram de ser consideradas áreas desmatadas até julho de 2008, foram desconsideradas áreas com desmates inferiores a 6,25 hectares, e as empresas com menos de 30% de irregularidades em ano anterior, sendo a JBS uma delas, reduziram o percentual de compras totais que passaram por auditoria.

Com o aumento da pressão internacional contra o desmatamento na Amazônia, JBS e Marfrig firmaram nos últimos meses novos compromissos para monitorar toda a cadeia de produção na Amazônia até 2025.

Empresas negam problemas com fornecedores diretos

A Folha procurou a JBS e a Marfrig e informou as empresas sobre os problemas detectados pelo Greenpeace na sua cadeia de produção de carne.

A Marfrig afirma que a fazenda São José, em São Félix do Xingu, não faz mais parte da lista de fornecedores da empresa, mas que em 2019 era, de fato, fornecedora de gado e “atendia aos critérios socioambientais exigidos pela Marfrig”.

Questionada se tinha conhecimento das queimadas na fazenda em questão, a Marfrig afirmou que, em 29 de agosto de 2019, “passou a monitorar via satélite focos de calor que indicam queimadas —intencionais ou não— nas propriedades que fornecem gado à companhia”.

Quando queimadas são identificadas, diz a empresa, tem início averiguação do fato e fica suspensa a compra de gado da fazenda até que a situação seja esclarecida. “Em caso de desmatamento ilegal confirmado, o fornecedor é bloqueado e deixa de vender gado para a empresa”, afirma.

A empresa diz aplicar o protocolo do MPF, elaborado em parceria com indústria e varejo, sob a coordenação do Imaflora, desde julho. “Adicionalmente, nosso sistema de geomonitoramento utiliza análises prévias a cada negociação de animais para abate, de modo que as informações sobre produtores e propriedades estejam atualizadas e aderentes aos compromissos públicos firmados pela empresa.”

A JBS, por sua vez, afirma que as fazendas São José em São Félix do Xingu, Porangaí, em Xinguara, Maanaim, em Cumaru do Norte e São Sebastião, em Santana do Araguaia "são fornecedoras diretas da JBS e estão em conformidade com a Política de Compra Responsável da JBS".

A empresa também diz que as propriedades estão cobertas por seus sistema de monitoramento diário por satélite na Amazônia, e que nenhuma das fornecedores direta está envolvida em desmatamento, invasão de terras indígenas ou de unidades de conservação, e tampouco apresentam áreas embargadas ou problemas de violência rural ou ainda uso de trabalho infantil ou escravo.

"Desse modo, atendem aos rígidos critérios socioambientais adotados pela empresa na relação com seus fornecedores", afirma.

A JBS declara que as demais fazendas citadas não são fornecedoras da empresa e que "desconhece as informações trazidas pela reportagem", considerando precipitada qualquer conclusão com base nelas. Mas aponta o monitoramento dos outros elos da cadeia de bovinos como "o grande desafio do setor" e destaca a iniciativa Plataforma Verde JBS, que usará blockchain para monitoramento da cadeia.

Segundo a JBS, após 2025, a presença na plataforma será critério obrigatório para efetivação de compras de gado pela empresa. "Com isso, a JBS confia que vai endereçar [obter] uma solução para o problema do monitoramento de mais elos da cadeia de fornecimento da pecuária no bioma amazônico."

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