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Governo Bolsonaro Eleições EUA 2020

Brasil iria de pária a bode expiatório do clima com vitória democrata

Economia nacional nada obtém da parceria com Trump e perderia mais ainda com Biden no poder

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Santo Antônio do Pinhal (SP)

O chanceler Ernesto Araújo diz sentir-se bem na condição de pária internacional, acompanhado dos EUA de Donald Trump. Se Joe Biden vencer nesta terça-feira (3), seu orgulho nacionalista sofrerá um teste de estresse, começando pelo aumento das pressões para o presidente Jair Bolsonaro reverter sua política de desmonte ambiental.

Sem o apoio de Trump, Bolsonaro terá de continuar falando sozinho, no teatro global, ao negar a importância das mudanças climáticas. Ou quando muito, na companhia dos líderes mais retrógrados do planeta, como aqueles com que se alinhou —vários potentados árabes do petróleo, não por acaso— para assinar declaração sobre saúde da mulher incompatível até com leis brasileiras.

Até o conturbado primeiro debate com Trump, em 29 de setembro, Biden parecia ignorar a Amazônia. Surpreendeu então com a promessa de reunir outros países e com eles oferecer US$ 20 bilhões ao Brasil para interromper a derrubada de florestas tropicais, caso contrário o país iria sofrer “consequências econômicas significativas”.

Bolsonaro reagiu como sabe, de modo agressivo. Numa rede social, escreveu em maiúsculas que a soberania brasileira não era negociável, que não aceitaria suborno nem ameaças. Nada a estranhar, para um presidente que teve a imprudência diplomática de declarar torcida pela vitória de Trump.

Há razões para duvidar que se realize a promessa financeira de Biden. Na página em que expõe seus planos para ambiente e clima (joebiden.com/climate-plan), o candidato democrata não menciona Brasil nem Amazônia, embora cite Chile, Canadá e Caribe, nem se oferece para custear diretamente a redução de desmatamento (fala só em cumprir compromisso financeiro dos EUA para resolver o aquecimento global, posto no congelador por Trump).

O vice-presidente de Barack Obama se limita a ameaçar, em seu programa, “nomear e responsabilizar os fora-da-lei do clima global”. Em um governo democrata, criaria relatório para apontar os países que faltam com seus compromissos no Acordo de Paris, a exemplo do que já fazem os EUA com rankings de direitos humanos e tráfico de pessoas.

Falar é fácil, pagar são outros 500. Países mais ricos nunca chegaram a cumprir a meta assumida em 2009 de desembolsar US$ 100 bilhões anuais para nações em desenvolvimento enfrentarem a mudança climática, objetivo a ser alcançado neste 2020. Em 6 dos 10 anos transcorridos, o presidente americano era Obama, e Biden, seu vice.

A cenoura fantasiosa dos US$ 20 bilhões para a Amazônia veio acompanhada da exibição do porrete usual em política externa americana, democrata ou republicana, as “consequências econômicas” (a exemplo das que o amigo Trump infligiu ao Brasil sob Bolsonaro). Biden não hesitaria em erguer barreiras a produtos brasileiros, ainda mais se isso lhe permitisse perfilar-se como durão e virtuoso diante de predadores da natureza.

Mesmo que sanções não venham, a guerrilha retórica contra o fora-da-lei já provoca e provocará mais dano à economia nacional. Não é outra a razão para setores mais modernizados do agronegócio exportador e grandes bancos terem descido do muro e passado a defender o fim da política de lesa-ambiente.

As vantagens esperadas de um acordo da União Europeia com o Mercosul estão por um fio precisamente por causa da insistência do governo Bolsonaro em tratar o desmatamento como questão de relações públicas, ou problema de imagem —quando as imagens que importam chegam de satélites.

A doutrina militar de que as denúncias de destruição fazem parte de conspiração para internacionalizar a Amazônia e ganhar acesso a riquezas naturais não resiste às lentes do sensoriamento remoto. Não será um sobrevoo sobre a selva que mudará a visão de estrangeiros sobre o desmatamento, pois os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estão disponíveis para quem não se nega a encarar a realidade.

Trump e Bolsonaro vivem e atuam em outro mundo; Biden, não. O retorno nos EUA a uma prática política mais fundada em evidências, não só em construções ideológicas, poderá dar novo impulso para as negociações internacionais sobre mudança do clima que se arrastam desde a cúpula ambiental de 1992 no Rio.

Poderia ser uma boa notícia para o Brasil, mas sob Bolsonaro o país fez meia volta e renunciou ao protagonismo exercido até a Conferência de Paris (2015). Pior, negligencia e até fomenta a destruição da floresta amazônica e de outros biomas, como cerrado e Pantanal.

A política comandada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reacendeu a fornalha que faz da mudança do uso da terra —a conversão de matas em pastos— a principal fonte nacional de emissões de carbono. Como resultado, multiplicam-se as iniciativas de boicote a commodities brasileiras, como soja e carne bovina.

Com Trump mantido no poder, o Brasil ainda poderia contar com a conivência política e a miragem de benefícios econômicos que a parceria ideológica nunca materializa. Com a eventual vitória de Biden, o pária se transformará num bode expiatório para a comunidade internacional fazer parecer que enfim se mobiliza perante o desafio da mudança climática.​

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