Atos de Bolsonaro afastaram órgãos ambientais da gestão pesqueira, aponta análise

Levantamento identificou 82 atos, de janeiro de 2019 a dezembro de 2020, com potencial impacto na área ambiental

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São Paulo

O governo Jair Bolsonaro (sem partido) publicou mais normas relacionadas à pesca em 2020 do que em 2019, e parte delas afastou órgãos ambientais, como o Ibama, da gestão pesqueira, o que eleva os riscos e potenciais impactos, de acordo com levantamento realizado em atos publicados no Diário Oficial da União.

A análise feita pela iniciativa Política por Inteiro identificou 82 atos no período de 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2020. Trinta e cinco deles são referentes ao ano de 2019 e 47 ao ano de 2020.

Os dados usados estão acessíveis através do Monitor de Política Ambiental, que acompanha a atividade do governo federal. A ferramenta foi desenvolvida em parceria da Folha com o Política por Inteiro (e pode ser acessada aqui).

Nessa ferramenta estão atos relacionados ao meio ambiente, continuamente extraídos de forma automatizada do Diário Oficial da União. A busca usa palavras-chave para selecionar as publicações de interesse. A plataforma aponta que, desde o início do governo Bolsonaro, foram publicados mais de 2.550 atos na área ambiental.

As publicações depois são analisadas por especialistas, que indicam quais são mais relevantes e, depois classificadas. Até o momento foram identificadas e classificadas 851 normas com potencial impacto significativo.

A análise da pesca aponta o afastamento, sob Bolsonaro, da área ambiental de decisões relacionadas à gestão pesqueira. Segundo o documento do Política por Inteiro, a área pesqueira, pelo menos desde a criação do Ibama, era vista como questão de ordenamento de recursos naturais finitos e, portanto, o Ministério do Meio Ambiente, além da responsabilidade sobre fiscalização, tinha competência conjunta para edição de normas.

Com Bolsonaro, porém, a gestão ficou concentrada na Secretaria de Aquicultura e Pesca, parte do Ministério da Agricultura.

A secretaria está sob comando de Jorge Seif Junior, que vem da família proprietária da JS Pescados, de Itajaí, lar do segundo maior porto do Brasil. Seif Junior, além disso, é próximo a Bolsonaro, com participação frequente em lives do presidente e até mesmo apelidado de "06". A empresa da família do secretário já foi multada por infrações ambientais.

Segundo a estratificação feita pelo Política por Inteiro, foram publicados pelo governo Bolsonaro 36 atos de regulação, 19 com flexibilização, 12 com reforma institucional, 5 de desregulação, 3 de resposta, 3 neutros, 1 de revisaço, 1 de revogaço, 1 de desestatização e 1 de recuo—todos relacionados à pesca.

Jorge Seif Júnior com o presidente Jair Bolsonaro — - Reprodução/Twitter

Entre os atos está o decreto 10.576, de 14 de dezembro de 2020, que trata da cessão de corpos d’água da União para a prática da aquicultura e que foi classificado como uma ação de desregulação.

Uma das mudanças centrais trazidas pelo decreto foi a substituição da expressão “autorização de uso” para “cessão de uso” dos corpos d’água. A expressão substituída constava no decreto 4.895, de 25 de novembro de 2003, que regia o tema.

“A cessão, a grosso modo, é uma transferência da propriedade, da posse, nesse caso, do corpo hídrico”, afirma Fábio Ishisaki, analista do projeto Política por Inteiro. A "autorização", por enquanto, de modo geral, constituía menor poder de ação.

Outro ponto que chama a atenção, segundo Ishisaki, é a duração da outorga para a realização de aquicultura (criação de seres vivos na água) determinada no decreto: 35 anos.

Por fim, o decreto coloca somente nas mãos da secretaria de Pesca a análise preliminar do projeto de aquicultura, em seguida também analisado pela Autoridade Marítima (para observação sobre tráfego aquaviário) e pela Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, do Ministério da Economia.

O Ibama não participa da análise, como ocorria no regramento anterior.

A publicação do decreto coincide com declarações de Bolsonaro sobre criação de tilápia em reservatórios de hidrelétricas. Em novembro de 2020, durante a inauguração de uma PCH (Pequena Central Hidrelétrica) construída com recursos do BNDES, em Renascença, no Paraná, o presidente soltou peixes na hidrelétrica e falou sobre o potencial de produção de toneladas de tilápia.

Cerca de um mês depois, Bolsonaro publicou em suas redes sociais que o Brasil e o Paraguai “avançam na viabilização de cultivo de tilápia no lago de Itaipu [usina hidrelética]”.

“O Brasil possui 73 lagos de hidrelétricas sob administração federal que podem servir para o cultivo de até 3,9 milhões/ton/ano”, publicou o presidente. “Hoje, todo o Brasil produz 320 mil toneladas/ano. O potencial, somente de Itaipu, é de 400 mil ton/ano.”

A tilápia, porém, é uma espécie exótica, nativa da África, e sua criação tem potencial de impactos para a biodiversidade do país. “A introdução de espécies exóticas é considerada um dos maiores vetores de perda de biodiversidade global, regional e local”, aponta o documento do Política por Inteiro.

Outro ponto que recebe atenção no documento é a revogação da resolução 303 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de proteção a manguezais. A derrubada da norma foi questionada judicialmente.

O Conama, ainda no primeiro ano do governo Bolsonaro, passou por uma reestruturação na qual o governo federal ganhou poder decisório enquanto a sociedade civil perdeu assentos.

A preocupação de Bolsonaro com a área da pesca —quando ainda era deputado federal ele foi multado por pesca ilegal— também é demonstrada em outra publicação recente sobre uma decisão liminar do ministro Kassio Nunes, do STF (Supremo Tribunal Federal), indicado à vaga pelo próprio presidente.

Foto tomada por agente ambiental durante autuação de Jair Bolsonaro por pescar dentro da Estação Ecológica de Tamoios, região de Angra dos Reis (RJ)
Foto tirada por agente ambiental durante autuação de Jair Bolsonaro em 2012 por pescar dentro da Estação Ecológica de Tamoios, região de Angra dos Reis (RJ) - 25.jan.12/Divulgação

A decisão do ministro, de dezembro, é referente a uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) sobre a proibição, por lei estadual desde 2018, de pesca com redes de arrasto no litoral do Rio Grande do Sul. “Parabéns ao ministro Kassio Marques por essa feliz liminar. Vamos pescar, pessoal”, disse Bolsonaro, em vídeo ao lado de Seif Junior.

O agora aposentado ministro Celso de Mello havia negado a liminar em 2019.

A pesca de arrasto é uma técnica na qual uma rede é arrastada no leito marinho. A prática possui baixa seletividade, ou seja, captura muitos organismos que não são alvo da ação. Esses animais capturados acidentalmente são normalmente devolvidos mortos ao mar, processo conhecido como descarte, segundo documento da ONG Oceana.

Apesar de focar os primeiros anos do governo Bolsonaro, a análise dos atos faz um retrospecto da área e aponta diversos problemas referentes à gestão pesqueira. Uma das questões preocupantes —e que permanece sem solução— é a falta de dados confiáveis e atualizados sobre estoques pesqueiros no Brasil.

O Brasil não possui estatística pesqueira desde 2009, o que prejudica a tomada de decisões e planejamento de políticas públicas, tanto do ponto de vista ambiental quanto de mercado, levando em conta, por exemplo, espécies de peixes com estoque sobre-explotados.

Erramos: o texto foi alterado

A versão anterior deste texto apontava 29 atos de desregulação, 11 de reforma institucional, 4 de resposta, 2 de desregulação e 2 de revisaço. Os valores corretos são: 36 atos de regulação, 12 de reforma institucional, 3 de resposta, 5 de desregulação e 1 de revisaço. O texto foi corrigido.

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