Descrição de chapéu Coronavírus desmatamento

Acre sofre com poluição acima dos limites seguros para a saúde humana

Problema, gerado principalmente pelas queimadas, agrava a situação do estado durante a pandemia

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Leandro Chaves
InfoAmazonia

O problema da poluição atmosférica no Acre é o mais bem documentado de toda a região Amazônica. O principal motivo é um projeto de monitoramento da qualidade do ar, criado por cientistas da Universidade Federal do Acre (Ufac), que culminou com a instalação de pelo menos um sensor portátil em cada município do estado, inclusive na histórica Xapuri.

Local onde a vida do líder extrativista Raimundo Mendes de Barros, de 77 anos, primo do seringueiro e ambientalista Chico Mendes, nunca mais foi a mesma após a Covid-19.

O seringueiro Raimundão, primo de Chico Mendes
Raimundão foi internado com Covid no auge das queimadas de 2020 - Ramon Aquim

O vírus chegou às matas de Xapuri em meados do ano passado. Raimundão, como é conhecido, foi diagnosticado com a doença em setembro, após um familiar testar positivo.

De lá pra cá, o combativo seringueiro, que sobreviveu aos turbulentos anos 70 e 80, quando explodiram no Acre os conflitos entre fazendeiros e trabalhadores rurais, foi ficando cada vez mais abatido. As idas ao roçado e às estradas de seringa que Raimundão tem em sua colocação, situada na Reserva Extrativista Chico Mendes, zona rural de Xapuri, já não são como antes. A cada 500 metros, ele precisa sentar para recuperar o fôlego. Além disso, câimbras nas pernas e braços têm virado rotina.

“Às vezes vou pro mato cortar ou caçar e quando passo da hora os meninos e a companheira ficam preocupados. À noite, quando me deito, estou enfadado. É uma sonharia e um tresvario! Tem noite que eu só falta gritar com essas câimbras. Não grito porque me faço de forte. Mas a verdade é que eu tenho me sentido cada dia mais delicado. A impressão é que a minha vida está por um risco”, disse o idoso, que após a Covid-19 descobriu um nódulo no pulmão.

Raimundão protagonizou, ao lado de Chico, os movimentos em defesa do meio ambiente e dos trabalhadores das florestas da região do Alto Acre, sendo, portanto, uma lenda viva da história recente do estado. Assim como o primo, foi jurado de morte, porém conseguiu escapar e passou a viver pelo legado de Mendes.

Décadas atrás, nos seringais, era comum os rapazes começarem a fumar muito cedo. Raimundo acendeu o primeiro cigarro com oito anos de idade. As mais de cinco décadas de tabagismo deixaram cicatrizes na saúde do velho seringueiro, o que pode ter contribuído para o agravamento do seu quadro de Covid-19 e para as sequelas. Pesa ainda contra o bem estar do extrativista o fato de ele morar no epicentro das queimadas entre as áreas protegidas do Acre.

De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no ano passado, durante a temporada do fogo, que vai de julho a outubro, a Resex Chico Mendes concentrou mais de 70% das queimadas entre as unidades de conservação federais situadas no estado, com 4.243 focos de calor, segundo o satélite S-NPP/VIIRS (da Nasa). Em setembro, mesmo período em que Raimundão recebeu o diagnóstico de Covid-19, Xapuri foi tomada pela fumaça.

Dos 30 dias daquele mês, 26 tiveram registro de poluição do ar acima do aceitável, com base em critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS). O município ficou atrás apenas da capital, Rio Branco, que teve 27 dias de setembro com concentração de material particulado a níveis danosos ao organismo humano. Acrelândia e Bujari também tiveram 26 dias acima dos padrões.

Em Xapuri, o aumento da quantidade de micropartículas está relacionado com o crescimento, em setembro, de 94% das internações por síndrome respiratória aguda grave, a SRAG, e de 68% pela Covid-19, segundo a análise do InfoAmazonia. Durante todo o período do fogo, quando o município teve uma média de 12,3 dias por mês com níveis de poluição acima do recomendado, o incremento nas internações por SRAG e pelo novo coronavírus foi de 37% e 28%, respectivamente.

Raimundão não tem dúvidas de que a fumaça prejudicou ainda mais sua saúde. “Todos os anos durante o fumaceiro eu fico mal. Tinha dias em que eu só faltava morrer sufocado. Chego até a buscar atendimento médico para aliviar esse sufoco. Estou pensando nas próximas semanas, quando começarem a queimar pra valer”.

Pressões ambientais

A Resex Chico Mendes e o seu entorno há anos sofrem pressões, como desmatamento, queimadas, ocupação ilegal da terra e criação de gado além do permitido no plano de uso. Segundo Raimundão, que já foi assessor para assuntos rurais do governo do Acre na década passada, sendo, portanto, um profundo conhecedor das dinâmicas que acontecem na área, essas práticas são as maiores responsáveis pela poluição que castiga os moradores das zonas rural e urbana.

“Penso que parte dessas doenças que afetam a população em parte tem a ver com essa discussão das nossas florestas, com a queima e o desmatamento. Isso sem dúvida nenhuma coloca em risco a saúde da nossa população.”

Fogo e fumaça dentro da Resex Chico Mendes, em Xapuri, em 2019
Fogo e fumaça dentro da Resex Chico Mendes, em Xapuri, em 2019 - Ramon Aquim

Ele destaca o interesse de pessoas de fora da reserva pelas terras para criação de gado. “Agora começou a vir um pessoal de Rondônia que está fazendo uma verdadeira esculhambação. Esse pessoal vende 40 hectares de terra lá por R$ 10 mil, cada, e quando chega aqui compra até 200 hectares a um preço de R$ 1.500 a R$ 2.000 por hectare. Então as pessoas daqui estão se iludindo. Estão cortando a colocação para vender e aí fazem aqui o desmatamento exagerado e o fogo que prejudica a saúde da gente”.

A doutora em Ciências Florestais pela Ufac Sonaira Silva também defende a ideia de que as derrubadas estão intimamente ligadas à poluição do ar não só na Resex Chico Mendes como em toda a Amazônia. A pesquisadora, que foi também consultora científica das análises do InfoAmazonia, explica que a maioria dos desmatamentos na região ocorre para abertura de áreas para produção, mas também cita a especulação de terras como causa. Ela ressalta, porém, que são os médios e grandes produtores, e não a agricultura familiar, que provocam os maiores impactos.

“Os responsáveis pela maior parte do desmatamento na Amazônia são os grandes produtores. Eles que fazem a maior poluição. No Acre, por exemplo, derrubadas superiores a 10 hectares representam mais ou menos 60% do total”. Silva observa ainda que no estado cerca de 40% das queimadas ocorrem em áreas recém-desmatadas, enquanto o restante é para renovação de terras já utilizadas, como pastagem e capoeira.

Monitorando a poluição

Sonaira é uma das coordenadoras do time que utiliza sensores portáteis para tentar entender a relação entre o fogo e a pressão que ele causa sobre a saúde da população. Em todo o estado, os dados relacionados ao material particulado presente no ar são medidos diariamente por 33 equipamentos, pelo menos um em cada município. A maior rede de monitoramento desse tipo na Amazônia é conectada à internet e faz medição das impurezas a cada 80 segundos.

O trabalho teve início no final dos anos 90, com a instalação de um único sensor no campus da Ufac em Rio Branco pelos professores Irving Foster Brown e Alejandro Duarte. Somente em 2019 aparelhos de baixo custo e conectados à internet (os PurpleAir PA-II-SD) foram instalados em todos os municípios do Acre a partir da decisão do Ministério Público estadual (MP-AC) de financiar a ideia.

“Primeiramente, é preciso sabermos o tamanho do problema. Todo mundo aqui já viveu períodos com valores extremos de poluição. Mas quanto foram esses valores? Quanto foi a exposição da população? Quanto mais a gente entender a gravidade, melhor serão as tomadas de decisões pela sociedade. Mas para além da saúde das pessoas, sabemos também que tudo isso tem impactos na vegetação e na saúde dos animais. No Acre, tem mais boi que gente. E se a poluição estiver prejudicando a produtividade do gado? Eles são mais suscetíveis à fumaça porque vivem na área. É bom fazer essas análises de custos para colocar na equação se vale a pena mesmo queimar”.

A análise dos dados dos sensores é feita pelo Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente, o LabGama, criado por Sonaira e outros pesquisadores da Ufac. O grupo coordena, em parceria com o MP-AC, universidade e municípios, a Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar do Acre, que possui um site onde é possível ver as medições nos municípios em tempo real. Esses sensores ajudaram a validar os dados da análise do InfoAmazonia, permitindo comparar os valores medidos localmente com os detectados pelos satélites.

A exportação da poluição

Na Amazônia, algumas localidades contribuem mais que outras para a poluição. No entanto, as micropartículas podem viajar centenas de quilômetros, seguindo a direção dos ventos, que na região corre de leste para oeste. Isso explica os altos níveis de fumaça em locais que não têm contribuição significativa em termos de fogo.

“A questão da fumaça não é inerente ao local de queimada porque após a queima o ar poluído vai para a atmosfera e você tem outros componentes que moldam isso, principalmente o vento”, afirma Sonaira.

Essa dinâmica das correntes de ar ajuda a entender também porque municípios acreanos com elevada incidência de fogo não necessariamente são os mais poluídos.

Feijó, por exemplo, que liderou o ranking de queimadas entre julho e outubro, no Acre, com 5.310 registros, teve média de dias por mês com níveis de poluição prejudiciais à saúde inferior a outros 13 municípios locais. Em setembro, quando as queimadas bateram recorde para o ano no estado, a cidade que também mais desmatou ficou 21 dias com material particulado acima de 25 µg/m³ no ar, enquanto outros municípios quase completaram o mês com poluição além do recomendado.

“Feijó fica no início de onde esse vento vem. As correntes de ar vindas do Amazonas chegam ao Acre por lá e também por Tarauacá e Cruzeiro do Sul e aí elas fazem a curva mais para o centro do estado. Para os feijoenses sentirem a fumaça, tem que queimar grande quantidade acima deles, no Amazonas. A poluição que esse município gera vai para a área mais leste do estado, onde estão Sena Madureira, Rio Branco, Xapuri, Brasiléia, entre outros”.

Acrelândia é o exemplo oposto de Feijó. A cidade contribuiu com apenas 2,1% das queimadas no Acre entre julho e outubro do ano passado, mas figura no ranking do período como a mais poluída, com média de 14,8 dias por mês com quantidade de micropartículas inaláveis prejudicial à saúde.

Nesses quatro meses, o município registrou aumento de 46% de internações por SRAG e 34% por Covid-19. Apenas em setembro, os crescimentos foram de 94% e 68%, respectivamente. “Acrelândia também concentra grande parte da fumaça de Feijó e Sena Madureira. Essa poluição vem ainda de Boca do Acre, no Amazonas, que queima muito, além de Rondônia, e aí faz aquele bolsão nessa região”, explica Silva.

Já Rio Branco tem cenário diferente de Feijó e Acrelândia. O município mais populoso do Acre foi o terceiro que mais queimou de julho a outubro, com 10% dos focos, e ocupa a mesma colocação na lista dos mais poluídos, com média de 13,3 dias por mês com níveis de poluição danosos à saúde. O incremento de internações por SRAG e Covid-19 nesse período foi de 40% e 30%, respectivamente.

No entanto, a capital acreana vai para o topo da lista de poluição quando analisado apenas setembro, ficando 27 dias desse mês com o ar impuro. As internações por SRAG saltaram 99% e pelo novo coronavírus, 71%.

De acordo com Foster Brown, em alguns momentos da temporada do fogo o Acre chega a registrar níveis de poluição superiores a São Paulo, a maior metrópole da América do Sul.

Em agosto do ano passado teve início a expansão da rede para outros estados da Amazônia. Foram doados um sensor para cada estado da Amazônia Legal pelo Ministério Público do Acre e Centro de Pesquisa Woodwell Climate, mas nem todos estão ativos. Com o início do funcionamento dos sensores em todos os estados, a sociedade terá informações importantes sobre o efeito das queimadas na poluição do ar, segundo Sonaira Silva.


Esta reportagem faz parte do “Engolindo Fumaça”, projeto especial do InfoAmazonia produzido com apoio da bolsa de jornalismo John S. Knight e do programa Big Local News da Universidade Stanford​.

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