Brasil virou bobo da corte em questão climática, diz ex-economista do Banco Mundial

Para Sérgio Margulis, comunidade global vê governo Bolsonaro como inconfiável e patético

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Rio de Janeiro

Durante 22 anos como economista do Banco Mundial para o Meio Ambiente, Sérgio Margulis, 66, acompanhou programas de mais de 40 países. Hoje aposentado, afirma que a comunidade global vê o governo brasileiro como patético, uma tragédia na questão climática.

Margulis critica o presidente Jair Bolsonaro por desperdiçar os dois diferenciais competitivos do Brasil: suas fontes renováveis de energia e a maior biodiversidade do planeta. Ele acusa o governo de perseguir todos os que, no Ministério do Meio Ambiente, tentam combater o desmatamento da Amazônia.

Retrato de Sérgio Margulis
Sérgio Margulis, 66, trabalhou por 22 anos no Banco Mundial e é autor do livro "Mudanças do clima, tudo o que você queria e não queria saber" - Divulgação

No livro "Mudanças do Clima, Tudo O Que Você Queria e Não Queria Saber" (clique aqui para baixar grátis), lançado este ano pela Fundação Konrad Adenauer e o Instituto Clima e Sociedade, Margulis critica o modelo de negociações, como a Conferência das Partes, porque não há mais tempo, segundo ele, para reuniões com mais de 200 países.

O economista sugere que os 20 países mais ricos, responsáveis por 80% das emissões de carbono, entre eles o Brasil, assumam as decisões antes que seja tarde, se já não for.

No livro "Mudanças do clima", o sr. afirma que o Brasil passou de protagonista nas discussões mundiais a "bobo da corte". Por quê? Nos governos anteriores, o Brasil se saiu relativamente bem no contexto internacional, talvez por ser um resumo do planeta, ter diversidade grande de renda, cores, raças, clima, tudo. É criativo, tem uma parte desenvolvida e outra com fome como na África. Isso gerou certa simpatia e ainda exercemos uma certa liderança porque o Itamaraty tem diplomatas muito bons.

De repente, na questão climática, a política deliberada do governo Bolsonaro foi a de virar o bobo da corte. Está cumprindo muito bem o papel. O presidente vai lá na ONU, de forma descarada, fazer promessas sem qualquer confiabilidade. É um governo que exibe orgulho por desprezar a questão climática, e a comunidade global acha isso uma palhaçada, vê o governo brasileiro como patético, uma tragédia na questão climática.

O próprio presidente Bolsonaro tinha prometido, na Cúpula do Clima, reduzir em dez anos, para 2050, o prazo para emissão zero de carbono. Não foi positivo? Não foi uma promessa crível, nada tem respaldo técnico. Ninguém sabe de onde saiu a conta, que não fecha. Nos governos Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer, havia uma participação da sociedade civil para subsidiar o Ministério do Meio Ambiente com estudos, discussões. Agora nada existe. O governo disse que tinha consultado empresas e ONGs para levar uma proposta a Glasgow, mas todas desmentiram.

Também não tem credibilidade a promessa de reduzir à metade a emissão de gases de efeito estufa até 2030? É ver para crer. O governo assumiu com o compromisso político de destruir a questão ambiental e climática no Brasil e está cumprindo à risca. Agora ficou lá pressionado, se sentiu acuado e disse, provavelmente para inglês ver, que sim. Vai voltar para cá e vai continuar.

Mas isso não prejudica o próprio setor produtivo, por desperdiçar recursos do mercado de carbono? Trabalho há 42 anos com conceitos de desenvolvimento sustentável, e vejo o país perder uma riqueza incalculável, jogar fora o maior potencial e vantagem comparativa de fontes renováveis do planeta, uma biodiversidade que ninguém tem. Não estou falando em abraçar árvore, mas em competição econômica pura, comercial.

O Brasil daria um salto absurdo se soubesse aproveitar a Amazônia. Tente imaginar o que os Estados Unidos fariam se a Amazônia fosse lá. Colocariam as melhores universidades para fazer todas as pesquisas imagináveis. O modelo do Bolsonaro é queimar e colocar uma vaca pastando por hectare. Isso não dá retorno e emite quantidade absurda de carbono.

Por qualquer lógica, o Brasil é que deveria colocar o pé no acelerador para descarbonizar o planeta, é o país que mais tem a ganhar com isso. Os outros teriam de fazer um esforço gigantesco para tentar alcançar.

O agronegócio é importante, mas 100% do incremento do agro tec pop foi pelo investimento do setor em pesquisa, apoio da Embrapa, não pela expansão da área agrícola para a Amazônia. Quem exporta sabe que o mundo está de olho, o Brasil vai sofrer sanção.

Agora? Não demora. A Europa está taxando, já chamaram o Paulo Guedes para falar de carbono. É óbvio que vai acontecer, ninguém vai deixar barato. O governo puxa o Brasil para trás em vez de pegar carona com o pessoal bom da agropecuária, o que inova, que está inserido no mercado global.

Prefere a idade da pedra, o discurso dos anos 70 de que ambiente e crescimento são excludentes. Pergunte se a Alemanha perdeu competitividade por ter os padrões mais restritivos em defesa do ambiente. Quanto maior é a preocupação ambiental, maior é a competitividade industrial.

Em outros governos que o sr. acompanhou, de Collor a Bolsonaro, os ministros do Meio Ambiente sempre se confrontaram com os setores da economia. É verdade. Mesmo na época do PT era um "pega pra capar" com empresário e a visão do partido obreiro, que põe a questão social acima de tudo. Nenhum ministro do Meio Ambiente teve bonança, sempre foi ladeira acima, brigando, enfrentando.

A diferença é que havia embate, ministro do Meio Ambiente defendia o meio ambiente, e agora defende a boiada. A Marina Silva foi ministra do Lula, não aguentou o tranco, mas era um nome forte. O Zequinha Sarney era forte, o Carlos Minc brigava, ninguém estava de enfeite.

Agora a gente sabe que defender seus recursos naturais, capitalizar a energia limpa, é a última chance de o Brasil se desenvolver. Mas o governo nega o problema climático, faz tudo para acabar com esses recursos e não tem política para o país se tornar competitivo.

Você deve imaginar quantas pessoas eu conheço no Ministério do Meio Ambiente. Ninguém pode falar comigo, me contar o que acontece. Temem ser gravados, que alguém os persiga. São pessoas que dedicaram a vida a combater as mudanças do clima e estão escanteadas por um regime persecutório.

Como avalia o discurso de Bolsonaro de que os países ricos são os culpados pelo efeito estufa e, portanto, devem se responsabilizar por tudo? Ele está correto ao dizer que os ricos são os responsáveis, mas o Brasil está entre os dez maiores emissores, não é uma santa. O que ele finge não entender é que, se alguém está preparado para a mudança do clima, é o grupo dos países ricos. Causaram o problema, mas os pobres vão sofrer muito mais.

Rússia, Canadá, Finlândia, Noruega, Suécia vão ganhar área de agricultura se houver aquecimento. Nós vamos sofrer muito. O preço de um tufão mais forte em Bangladesh é insuportável para o PIB. A gente tem o risco seríssimo de savanização da Amazônia.

Os danos climáticos são irreversíveis? Alguns sim, outros não. Os padrões climáticos só vão piorar. Mesmo que a gente consiga limitar a dois graus, quem disse que uma elevação média de dois graus é suportável para todos? O aquecimento não acontece devagar e bonitinho, igual para todo mundo. Tem lugar que vai aquecer zero, outro vai aquecer oito graus.

A característica fundamental da mudança do clima é o aumento da variação, mais frequência e mais extremos. Há pontos de ruptura que me deixam apavorado, como o metano que pode se soltar na Rússia com o descongelamento. Dependendo do gelo que se despencar da Antártica, uma onda eleva o oceano e não haverá o que fazer. As pessoas falam que pode não ser bem assim. É verdade, mas também pode ser bem pior.

O Brasil tem condições de zerar suas emissões e ganhar dinheiro no mercado de carbono? A economia verde é isso. Os países ricos têm feito do pós-Covid uma oportunidade de refazer suas economias em moldes verdes. Com dois meses, Joe Biden chamou a Cúpula da Terra, 40 chefes de Estado, não para tratar da pandemia, mas de mudança do clima.

O mundo está correndo, há planos bilionários de incentivo, a Europa voa. O governo americano tem US$ 2 trilhões para forçar emissões zero no mundo, aumentar eficiência energética, treinar e capacitar pessoas para a produção de energia do vento, do sol, da biomassa. E nós vamos entregando o jogo, perdendo a chance de estar 40 passos à frente da China.

Qual foi o maior revés ambiental no governo Bolsonaro, o mais difícil de reverter? Sem dúvida, o incentivo ao desmatamento da Amazônia, por tudo que representa em perda econômica. O presidente é tão mesquinho que faz questão da destruição até das áreas indígenas, o pessoal mais fragilizado e a maior riqueza antropológica do mundo.

A política dele e do general Hamilton Mourão é de mentir sobre dados, desmontar sistemas de observação, fiscalização, de combater e até demitir quem combate o desmatamento. É isso que nos torna, hoje, um pária internacional.

Em seu livro, critica os fóruns de negociação mundial, como a COP. Por quê? Se você continuar nesse modelo de colocar 200 países à mesa para negociar dentro das regras da ONU, não tem como chegar lá. Os 20 mais ricos são culpados por 80% das emissões. Tem que colocar preço nas emissões de carbono, impor sanções entre eles. E deixar os outros 180 países para lá.

O Brasil está entre os 20, a Argentina também. Não precisa colocar Madagascar na mesa, tem é que dar dinheiro para eles consumirem mais energia e melhorar a vida da população. Deixa Madagascar para lá, deixa a emissão dos 180 países para lá. Esse modelo da ONU não funciona, está na hora de tomar uma decisão mais séria, ágil e rápida.


RAIO-X

Sérgio Margulis é matemático com mestrado pelo Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e doutorado em Economia Ambiental no Imperial College London (1988). Foi economista de meio ambiente do Banco Mundial (1990-2012), é professor da PUC e pesquisador sênior associado do Instituto Internacional para a Sustentabilidade e da WayCarbon. ​

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