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COP26 mudança climática

Entre apocalípticos e integrados, COP26 abriu porta para acordo dos EUA com a China

Cúpula do clima acaba com frustração previsível pela prevalência da economia sobre o ambiente

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São Paulo

Pouco antes do começo da COP26 em Glasgow, o príncipe Charles, sempre ele, empunhou as trombetas do apocalipse. Se os países não lograssem avanços hercúleos, sustentou, o mundo perderia sua última chance.

Ativistas ambientais fazem funeral simbólico da COP26 na Necrópole de Glasgow
Ativistas ambientais fazem funeral simbólico da COP26 na Necrópole de Glasgow - Paul Ellis/AFP

É um filme conhecido nessas reuniões, e tem ganho urgência na figura crescentemente agressiva e guerrilheira da sueca Greta Thunberg e ativistas do mesmo naipe.

Na prática, a pressão acaba surtindo só efeito na bela retórica de líderes como Joe Biden e na inclusão de referências a combustíveis fósseis no atribulado documento final da conferência.

Obviamente, o abrandamento das palavras no texto e a exclusão de países de taxas no mercado de carbono e das metas para redução do uso de carvão provam que tudo pode não passar do que a própria Greta chamou: "greenwashing e blablablá".

Mais do que isso, do ponto de vista geopolítico, mantém o status quo, com os mais pobres se queixando dos mais ricos e a vida indo em frente —com "pobres" entre aspas, como a Índia, operando em favor de seus interesses.

Adicione-se a isso a curiosa situação na qual a China finge liderar um bloco de países em desenvolvimento, como se não fosse ela ator central ao lado dos Estados Unidos no problema e na solução das questões do clima.

Que o planeta não conseguirá segurar o aumento da temperatura em 1,5˚C até o fim do século, isso parece certo, mas a COP26 trouxe uma novidade geopolítica justamente de seus dois principais participantes.

O anúncio de um entendimento entre chineses e americanos é mais uma carta de intenções e deve ser devidamente consumido com um grão de sal, para ficar na imagem cara à língua inglesa prevalente no Reino Unido.

Mas ter ocorrido em meio a um dos pontos mais baixos na relação entre as duas maiores potências econômicas do mundo é, em si, uma notícia notável que pode sinalizar uma inflexão.

Desde 2017, os EUA responderam à escalada de assertividade da China de Xi Jinping com a chamada Guerra Fria 2.0. Basicamente, abriram-se áreas de atrito em todos os segmentos possíveis: econômico, diplomático e, para preocupação de muitos, militar.

Xi denuncia o movimento como um temor infundado dos americanos, enquanto outros tambores, os da guerra, são tocados de lado a lado. A movimentação em torno de Taiwan de outubro para cá tem assustado mesmo ponderados analistas, não por acreditarem numa guerra, mas num acidente que leve a uma escalada.

EUA e China são os maiores poluidores do mundo, e concordarem em trabalhar por metas de redução do uso de carvão e de emissão de metano é alvissareiro. Mas ninguém deve achar que Pequim irá deixar de lado sua matriz, a carbonífera, do dia para a noite

Os chineses, como todo o mundo, estão saindo da crise da pandemia com muitos arranhões, acentuados pela crise no seu mercado imobiliário. Na prática, a economia global agradece a impossibilidade de um cavalo de pau disruptivo no setor energético: é preciso ter um mundo para querer salvá-lo, afinal.

Essa leitura é turvada pelo fato de que a necessidade imediata costuma embotar a possibilidade real de mudança, voltando aí ao blablablá gretesco, por assim dizer.

Xi, por sinal, não deu as caras na Escócia, ao contrário de Joe Biden. Mas ambos estarão numa conversa virtual nesta segunda (15), prova de que talvez alguma peça tenha se movido no congestionado tabuleiro à frente dos líderes.

Apesar de criticada pela ausência de Xi, a China evitou a pecha de vilã devido aos movimentos, marqueteiros ou não, de seu enviado. O mesmo não se pode dizer de outros países.

O Brasil de Jair Bolsonaro chegou perdendo e, apesar do esforço de seus representantes de dizer que iria cumprir metas ambiciosas, não convenceu ninguém. Mas o presidente já é um pária ambiental desde o começo de seu mandato, como o embate com europeus e americanos durante os incêndios amazônicos de 2019 comprovou.

O fato de que seu ministro enviado mentiu sobre dados e de que números desoladores de desmatamento terem sido divulgados durante a COP26 não ajudou, mas, novamente, o jogo estava perdido. No continente, a Colômbia despertou como um ator respeitável a ser ouvido, dando cor local à decadência de um Brasil que já foi imprescindível às mesas.

Até a política doméstica entrou na conta, com governadores como o rival de Bolsonaro João Doria (PSDB-SP) tirando uma casquinha da má-fama do presidente em Glasgow e, reforçados pela presença ativa de ONGs climáticas, mostrando que o Brasil não se resume ao governo federal.

Já a Austrália, empoderada por sua recém-estabelecida aliança militar com os americanos e britânicos, conseguiu ultrapassar o país de Bolsonaro no ranking de antipatia climática mundial com sua defesa enfática do carvão e o negacionismo científico generalizado.

Até pelo seu peso na economia mundial, EUA e China saem da COP26 protagonistas como sempre, até com uma pitada de esperança.

Se essa aproximação ocorrer, o encontro já terá tido um motivo para ser lembrado além do carnaval tribalista dos apocalípticos e o sorriso cínico dos integrados, para furtar a imagem de Umberto Eco. De resto, é esperar o próximo toque da trombeta do fim do mundo de Charles no Egito, na COP27.

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