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Quebradeiras de coco criam consórcio para alcançar mercado mundial

Cooperativas e associações de mulheres almejam ganhar escala, aumentar renda e preservar palmeiras de babaçu no Maranhão

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Lago do Junco (MA)

Maria Gomes da Silva completa 90 anos em janeiro. "Todo o tempo quebrando coco, toda a vida pegando a machadinha para ajudar minha mãe."

Sentada no chão junto à parede de pau-a-pique ("enchimento", como se diz no povoado Ludovico, em Lago do Junco, MA), a anciã maneja com destreza o porrete que bate o coco contra a lâmina fixada no bloco de madeira. De cada fruto retira em média quatro amêndoas, com as quais se produz um óleo vegetal em demanda crescente pela indústria cosmética e de alimentos.

"Criei quatro filhos, tudo debaixo da casinha forrada de palha", orgulha-se. A moradia de barro abriga a neta, pois a sua agora é de alvenaria, sinal da melhora na vida das 300 mil quebradeiras de babaçu do Brasil, 135 mil delas no estado do Maranhão.

A quebradeira Maria Gomes da Silva, 89, quebra cocos de babaçu em uma sombra ao lado de sua casa na zona rural de Lago do Junco (MA) - Lalo de Almeida/Folhapress

Hoje Maria consegue extrair 3 kg de amêndoas de cocos de babaçu, mas houve tempo em que tirava 10 kg, de segunda a sexta –ou sábado. Mantida uma produção de 5 kg por dia, ao longo da vida terá obtido umas 140 toneladas, ou cerca de 35 milhões de amêndoas.

Houve tempo em que os 10 kg diários lhe renderiam 1 kg de arroz ou de café com atravessadores e fazendeiros donos de babaçuais. Hoje, pode escolher entre receber R$ 3,80 por quilo e trocar o lote por mercadorias entre os mais de 2.500 itens das oito cantinas da região (no vizinho Tocantins, o preço pode cair a R$ 1,50 por quilo).

Cantina é o nome local dos mercadinhos da Coppalj (Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco), uma das 12 organizações envolvidas na criação do Consórcio Babaçu Livre e na realização, em 11 e 12 de novembro, do encontro preparatório Não Derrube Essa Palmeira, reunindo as quebradeiras do Médio Mearim, região maranhense onde fica Lago do Junco.

O consórcio será criado numa reunião geral em março e coroa o esforço das quebradeiras para conquistar o mercado internacional com um produto sustentável de origem tradicional. As quebradeiras contam com assistência técnica da Central do Cerrado, uma cooperativa baseada em Brasília.

"No Tocantins tem quebradeira / No Piauí tem quebradeira / No Pará tem quebradeira / No Maranhão tem quebradeira", cantavam dezenas de mulheres congregadas na igreja do povoado São Manoel, sob o ritmo de palmas. Elas integram o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).

Os babaçuais, ou matas de cocais, são característicos da zona de transição ecológica entre floresta amazônica, cerrado e caatinga. Estendem-se por 250 mil km2 –superfície comparável à do estado de São Paulo– e estão sob forte pressão da agropecuária nos quatro estados (há levantamentos a indicar que a área pode ter aumentado nas últimas décadas, ainda que com densidade variável de palmeiras).

De todo modo, na parcela maranhense da Amazônia Legal, 5.838 km2 (5,4%) de floresta chuvosa já foram desmatados, 281 km2 só no último ano. Na parte que lhe cabe de cerrado (savana), a devastação foi maior, 39.593 km2 (13,6%), com o avanço do agronegócio sobre o setor conhecido como Matopiba (acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

Rebeca, 1, não sorri na rede em que observa a avó Maria Célia Sousa Lima e o avô Francisco da Conceição quebrarem cocos. Desce da rede para ver de perto os forasteiros que chegam e aponta as cadeiras em que devem se sentar, ainda sem sorrir nem falar.

Com auxílio do marido, a avó extrai até 20 kg de amêndoas por dia, das quais produz o "azeite" por método caseiro, que começa pela torra e pela moagem numa máquina forrageira, depois cozimento. "Dá trabalho demais", diz, para obter até quatro litros por dia do óleo que vende a R$ 15 o litro para vizinhos.

O processo tradicional é ineficiente, pois retira cerca de 20% de gordura das amêndoas, que em realidade contêm 60% de óleo. Na fábrica instalada pela Coppalj em Lago do Junco, as prensas e chaleiras industriais conseguem um rendimento muito maior, da ordem de 56%.

O casal Maria Celia Sousa Luna e Francisco da Conceição quebra babaçu em seu sítio no povoado de São Geraldo, na zona rural de Lago dos Rodrigues (MA) - Lalo de Almeida/Folhapress

Durante a visita da Folha, havia 35 toneladas de amêndoas estocadas para processamento na fábrica. Três funcionários estavam envasando 16.000 kg de óleo bruto para a Natura, sexto embarque de um dos dez lotes contratados pela empresa.

Um dia antes, com as chaleiras a todo vapor, 4.200 kg de amêndoas tinham rendido 2.430 kg de óleo e 1.440 kg de torta, o resíduo contendo 30% de proteína e 6% de óleo destinado a alimentação de gado. Num galpão ao lado, a Coppalj começou a refinar o óleo para vender com certificação orgânica.

No mercado convencional de óleo de babaçu, o óleo comum fatura R$ 7,50 por quilo. Refinado, chega a R$ 15. Com certificação, pode atingir R$ 20. Em Brasília, R$ 30 –é o que se chama de agregação de valor, chave para melhorar a renda das quebradeiras.

A certificação orgânica veio em 1998, reconhecimento importante para um produto de base comunitária e cultural, numa região marcada pelo conflito agrário e pelo movimento social.

"Não estamos vendendo só óleo", diz Gilsimar de Jesus Ermino, gerente da fábrica da Coppalj. "Por trás tem um trabalho de resistência, um trabalho de preservação ambiental."

Em 2020 a fábrica processou 496 toneladas de amêndoas e produziu 255 de óleo. Neste ano, de óleo refinado só saíram 10.400 kg, por problemas na operação do equipamento instalado há três anos para extrair todas as impurezas do óleo bruto e reduzir sua acidez a 0,2%-0,3%.

Franciene Pereira Frazão (com luvas amarelas) e Alódia Maria Sousa da Silva trabalham na linha de produção na fábrica de sabão e sabonetes feitos com óleo de babaçu - Lalo de Almeida/Folhapress

A cooperativa criada há 30 anos conta com 211 famílias associadas. Segundo o diretor João Valdeci Viana da Silva, a procura pela Coppalj tem aumentado, pois há cada vez mais gente interessada na garantia de preço mínimo das amêndoas e nas sobras de caixa que são distribuídas entre cooperados a cada exercício.

Na comunidade de Ludovico, há outro estabelecimento voltado a agregar valor a produtos de babaçu, uma fábrica de sabão e sabonetes. Aberta apenas quatro anos depois da Coppalj, foi iniciativa da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais.

Fundada há 33 anos, a AMTR é a "mãe de todas", diz Alódia Maria Sousa da Silva, diretora da fábrica, referindo-se à organização pioneira do movimento social no Médio Mearim que daria origem à cooperativa e à Assema (Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão), em 1989. Em 2010, todas participariam da criação da Central do Cerrado.

A instalação fabrica cerca de 40 mil sabonetes por ano com a marca Babaçu Livre, que vende a R$ 2 a unidade. Produz ainda barras de sabão, comercializadas a R$ 7 o quilo no local, ou R$ 8 nas cantinas, mas em cidades vizinhas pode alcançar R$ 10.

"Sabão como esse não existe", diz a diretora. "O que é feito com gordura animal não se compara."

Um time de 20 quebradeiras trabalha em horários livres na fábrica, conforme a necessidade, por diárias de R$ 60. A maioria tira entre R$ 500 e R$ 600 por mês para reforçar o orçamento, mas algumas, como Franciene Pereira Frazão, a mais assídua, podem receber R$ 1.200.

Em 13 de novembro, a quebradeira Maria José Rodrigues, 78, e seu filho José do Carmo Correia Junior, 38, morreram esmagados pela queda de uma palmeira de babaçu em Penalva, a 270 km de Lago do Junco. Segundo relatos, a árvore teria sido derrubada por um trator da fazenda enquanto a dupla recolhia cocos.

As mortes ainda estão sob investigação, mas, se confirmada, essa violência é hoje bem menos comum do que nos anos 1980, quando estava aceso o conflito agrário na região. Na própria localidade de São Manoel, em cuja igreja se realizou o encontro Não Derrube Essa Palmeira, casebres haviam sido queimados em 1986 numa incursão de jagunços.

O movimento social aponta como origem do conflito a Lei Sarney de Terras (1969), que iniciou a titulação de grandes glebas públicas para fazendeiros como incentivo à pecuária. A ocupação deslanchou derrubadas para formação de pastos, e os proprietários começaram a impedir o acesso de quebradeiras às palmeiras remanescentes, ou então a cobrar-lhes parte da produção.

A quebradeira Iraildes Luz Silva, 38, coleta frutos em um babaçual dentro da propriedade da Coppalj - Lalo de Almeida/Folhapress

Em paralelo, o governo do presidente Fernando Collor de Mello (1990-92) abriu o mercado brasileiro para a concorrência do óleo de palmiste. A produção anual de óleo de babaçu caiu de 300 mil ou 400 mil toneladas anuais para estimadas 30 mil hoje, segundo a Central do Cerrado.

Naquele tempo, a quebra dos cocos ainda era feita no local da coleta, para facilitar o transporte apenas das amêndoas. As mulheres ficavam expostas à violência, entretanto, e o trabalho passou gradualmente a ser realizado em telheiros de palha junto das casas das quebradeiras.

Elas se organizaram em clubes de mães que, de início, reivindicavam acesso a saúde e educação para seus filhos. Com apoio da Igreja Católica, passaram a demandar também a preservação dos babaçuais e a manutenção do acesso ao recurso, luta que deu origem à AMTR e outras organizações.

Um resultado dessa mobilização foi a Lei do Babaçu Livre aprovada em 1997 em Lago do Junco. Depois viria uma dúzia de outras leis municipais, mas a Câmara dos Deputados arquivou um projeto de lei federal que proibiria a derrubada de palmeiras de babaçu. O estado do Maranhão criou em 2011 o Dia das Quebradeiras de Coco Babaçu (24 de setembro).

As normas municipais vigentes no Médio Mearim garantem o acesso de quebradeiras a babaçuais e estipulam que 60 palmeiras em produção (as chamadas coringas) devem ser preservadas em cada hectare de pastagem. Cabe ao proprietário manter ainda 60 plantas recém-brotadas (pindovas), para garantir o desenvolvimento de espécimes juvenis (capoteiras) e coringas.

Quebradeira rompe cocos de babaçu em uma sombra na zona rural de Lago do Junco (MA) - Lalo de Almeida/Folhapress

Outro movimento que se espalhou pela região sob incentivo da Igreja Católica foram as Escolas Família Agrícola (EFAs), em que os alunos passam 15 dias no colégio e outro tanto nas pequenas propriedades, ajudando familiares na produção e na adoção das técnicas agrícolas e sanitárias aprendidas.

Abriram-se 22 dessas EFAs, e hoje restam 19, depois que a igreja retirou seu apoio em 2012. Os professores são pagos pelo governo estadual maranhense em convênio com municípios, mas falta verba para todo o restante.

Na EFA Antonio Fontenele, a sala de informática está desativada por falta de equipamento. As paredes estão descascadas e as portas, começando a se desfazer perto do chão, sob efeito de sol e chuva.

Só o refeitório passou por reforma recente. O lanche da tarde tem bananas e suco de abacaxis colhidos ali mesmo, além de bolachas de água e sal. Os mantimentos básicos como arroz e feijão, no entanto, têm de ser fornecidos pelas famílias dos alunos.

A agrônoma Thays Lanna Souza Ferreira, 24, que acompanhou a visita, cursou a EFA João Evangelista de Brito, em Pio 12 (MA). Dali fez o ensino médio numa escola pública na cidade de Vitorino Freire e em seguida foi estudar na capital, São Luís, no Instituto Federal do Maranhão.

Hoje ela trabalha como técnica da Coppalj. Uma de suas atribuições é mapear com GPS os babaçuais e produtores que fornecem para a cooperativa, a fim de garantir a rastreabilidade do óleo certificado.

Às 8h de sábado, 13 de novembro, no caminho para a comunidade São Manoel, duas jovens como Thays Ferreira já estão trabalhando numa área de pasto ao lado da estrada. Recolhem cocos de babaçu com ajuda de dois jumentos. Indicam onde fica a porteira, 50 m abaixo, e a reportagem se junta a elas.

Maíza Oliveira, 19, e Maura Oliveira, 21, são irmãs. Cada jegue porta dois jacás (cestos) que rapidamente se enchem de frutos. Lotados, compõem o que se chama de carga, cerca de 140 kg que correspondem a 900 ou mil cocos e podem ser vendidos a R$ 12 sem quebrar.

Processada por quebradeiras, a carga rende 6 kg a 8 kg de amêndoas, que, vendidas para as cantinas da Coppalj, garantiriam R$ 24 a R$ 32 de receita. Com as cascas se pode fazer carvão, vendido a R$ 40 por saca de 40 kg.

As irmãs Maura, 21, e Maíza, 19, enchem rapidamente os jacás (cestos) conduzidos por jegues - Lalo de Almeida/Folhapress

Há várias coringas (palmeiras maduras) distantes umas das outras, mas quase nenhuma pindova ou capoteira em volta de Maíza e Maura, em meio ao capim verdejante, indício de que o babaçual não se renovará quando as coringas começarem a morrer.

É comum ver na região babaçuais derrubados ou queimados para formação de pastos. Alguns preservam palmeiras de pé para cumprir a lei, mas também se veem pindovas ressecadas por envenenamento com agrotóxicos, de modo a não concorrerem com o capim.

Num campo recém-derrubado na área conhecida como Três Poços, em Lago dos Rodrigues, um trator revolve o solo coberto de cinzas. O proprietário foi chamado para reunião com quebradeiras, numa igreja, e aceitou dialogar, prometendo respeitar a preservação de 60 coringas e outro tanto de pindovas dali em diante.

Palmeiras de babaçu queimam para a abertura de pastagem em uma fazenda na zona rural de Lago dos Rodrigues (MA) - Lalo de Almeida/Folhapress

A conservação de palmeiras na pastagem não é incompatível com a pecuária, argumentam as mulheres. Ao contrário, para elas é mais fácil recolher os cocos no capinzal do que na mata, onde podem entrar com os jumentos. E a sombra do babaçu diminui o estresse do rebanho, aumentando sua produtividade.

A Coppalj mantém 17 cabeças de gado em 10 dos 51 hectares de um sítio para demonstrar a viabilidade desse manejo e da complementação de renda com sistemas agroflorestais, prática conhecida como SAF, que consorcia plantas lenhosas com fruteiras como abacaxi, caju e mamão. A média de 1,7 cabeça por hectare é superior à brasileira, que fica em 1/ha.

Maria Silva de Morais não precisa ser convencida, porém. É entusiasta dos SAFs. Com o chapéu de palha furado e o terçado na mão, mostra com visível orgulho os mamoeiros e as bananeiras carregados de frutos que mantém ao lado do babaçual.

Como toda quebradeira, ela não tem medo do trabalho pesado –só de que um coco de babaçu lhe caia sobre a cabeça em dia de ventania. "Se o cacho já caiu, eu cato. Se estiver cheio, não pego no chão", explica. "Tenho neto para ajudar a criar."

Os jornalistas Lalo de Almeida e Marcelo Leite viajaram a convite do IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil ) e do CEPF ( Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos).

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