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chuva mudança climática

Mais frequentes e intensas, chuvas trazem assinatura da mudança climática

Clima instável deve ampliar áreas de risco e exige planos de adaptação

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São Paulo

A questão se repete a cada vez que presenciamos um evento climático extremo: esse fenômeno aconteceu naturalmente ou é um feito da mudança climática? A pergunta nunca foi respondida, porque estava equivocada.

A associação entre as mudanças climáticas e os eventos extremos —como tempestades, inundações, secas, furacões ou tornados— é mais complexa do que uma relação direta de causa e efeito.

Não haveria base científica para dizer algo do tipo "essa chuva aqui foi culpa da mudança do clima, mas aquela outra é natural e já iria ocorrer de qualquer modo". O aquecimento global influencia todo o sistema climático, sem discriminação.

Equipes de resgate em Franco da Rocha (SP), em área que desmoronou devido às chuvas - Rivaldo Gomes - 31.jan.2021/Folhapress

A pergunta correta, que levou os cientistas a encontrar uma relação clara entre as diferentes expressões do mesmo fenômeno, questiona como a elevação da temperatura global impacta a frequência e a intensidade dos eventos extremos.

A resposta foi quantificada de forma inédita no último relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU.

Segundo os dados globais do relatório, as chuvas fortes no mundo já são 0,3 vezes mais frequentes e 6,7% mais intensas.

Em um cenário extremo, de aumento de 4°C na temperatura média global, a precipitação pode se tornar 30,2% maior e a frequência —cuja média global é de uma chuva forte por década— pode quase triplicar, chegando a 2,7 ocorrências no mesmo período.

Mais frequentes e mais intensas do que os padrões para o período, as chuvas que vivemos nos últimos dois meses em municípios da Bahia, Minas Gerais, São Paulo e em Petrópolis confirmam um marco temporal definido, desde o fim dos anos 80, pelos relatórios do IPCC.

Eles apontavam o ano de 2020 como horizonte para ação climática, já que a partir desse ano a ocorrência de eventos extremos seria mais expressiva.

"Quando a temperatura aumenta, isso coloca mais energia na atmosfera. Se há fonte de umidade, isso gera mais evaporação e faz com que as nuvens cresçam mais. Nuvens de maior desenvolvimento vertical provocam chuvas mais intensas", descreve o doutor em Meteorologia Gilvan Sampaio, coordenador de Ciências da Terra do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

"O sistema climático hoje tem muito mais energia para dissipar do que tinha há 50 anos. Grandes secas e enchentes são formas de dissipação dessa energia", afirma Paulo Artaxo, físico da USP e um dos autores dos relatórios científicos do IPCC.

Embora já tenhamos vivido episódios isolados de chuvas intensas nas últimas décadas, com índices pluviométricos que superam em apenas alguns dias a previsão de precipitação de todo o mês, a mudança climática guarda padrões inéditos, para os quais não estamos preparados.

"Com chuvas mais fortes, as áreas de riscos serão ampliadas. Áreas que historicamente não inundam podem passar a sofrer com as inundações. Precisamos mapeá-las", destaca Ivan Maglio, pesquisador da USP e pós-doutor em planejamento urbano e mudanças climáticas.

"Não basta tratar os riscos físicos quando há emergência, é preciso criar planos de adaptação climática para minimizar esses problemas com prevenção e preparação", acrescenta.

Há pelo menos uma década, os governantes de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro têm acesso à informação científica sobre os impactos climáticos projetados regionalmente.

Coordenado pelo Inpe em parceria com universidades, o estudo "Megacidades, Vulnerabilidade e Mudanças Climáticas" projetou os impactos do aquecimento global sobre as duas cidades até o final do século.

"Totais de chuvas acima de 50 mm/dia, praticamente inexistentes antes da década de 50 do século passado, ocorrem comumente de duas a cinco vezes por ano na cidade de São Paulo. A crescente urbanização das periferias atuando em sinergia com o aquecimento global projeta que eventos com grandes volumes de precipitações pluviométricas irão ocorrer com mais frequência no futuro, abarcando cada vez uma maior área geográfica da região metropolitana", diz o estudo do Inpe publicado em 2010.

O estudo fez o cruzamento entre as projeções da expansão urbana na região metropolitana e a ampliação das áreas de risco causada pelo aumento das chuvas. Em 2030, mais de 20% da área de expansão seriam suscetíveis a enchentes e inundações e cerca de 11%, a deslizamentos.

Os planos de adaptação climática precisam compor um eixo do planejamento urbano, junto ao combate à desigualdade social —já que as populações socialmente mais vulneráveis são também as mais impactadas pela mudança do clima e formam a maioria dos moradores em áreas de risco.

Projeções regionais do IPCC publicadas no último agosto mostram aumento das chuvas fortes no Centro-Sul do Brasil, com grandes volumes de água concentrados em até cinco dias de chuva, enquanto o Nordeste e a Amazônia devem sofrer com períodos secos mais prolongados.

Sem o ritmo e a previsibilidade usuais, chuva e seca podem ser igualmente sinônimos de catástrofe.

Nos primórdios da agricultura, a invenção do conceito de tempo permitiu à humanidade lidar com os ciclos naturais. Agora o desafio reside especialmente na falta de regularidade dos tempos da natureza, o que exige reforço no planejamento de políticas públicas de médio e longo prazos, baseadas na melhor ciência disponível. A única saída é se adiantar.

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