Cassiterita é a nova ameaça aos indígenas yanomami

Demanda global por estanho incentiva mineração ilegal; metal é usado em embalagens e eletrônicos

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Emily Costa Sam Cowie
Repórter Brasil

Desmatamento, lama, rios destruídos e indígenas sob ataque. Enquanto a exploração ilegal de ouro na terra indígena Yanomami, em Roraima, deixa cicatrizes na floresta, o fluxo de garimpeiros clandestinos para o território é crescente, já que agora eles têm uma motivação extra: a cassiterita.

Essa nova caça ao tesouro é impulsionada pela valorização e pelo aumento da demanda global por esse mineral, de onde é extraído o estanho —usado nas latas de alimentos, no acabamento de carros, na fabricação de vidros e até na tela dos celulares.

"A cassiterita está comandando Roraima", diz à Repórter Brasil José Altino Machado, conhecido como Zé Altino, que há mais de 50 anos atua como garimpeiro na Amazônia e se denomina "pioneiro na busca pela cassiterita", já que chefiou a primeira corrida pelas jazidas no Norte do país.

"Nos anos 1980, eu era sozinho na cassiterita. Todo mundo queria ouro. Agora mudou, todo mundo quer a cassiterita".

Dois policias federais observam caminhão com carga de cassiterita ilegal apreendida em Boa Vista (RR)
Cassiterita ilegal é apreendida pela Polícia Federal em Boa Vista em fevereiro; só neste ano, operações em Roraima encontraram 110 toneladas do minério - Polícia Federal/Divulgação

Recentes operações feitas no estado indicam que a exploração do mineral cresce em ritmo acelerado na terra indígena. Em março, a Polícia Federal tinha apreendido 110 toneladas de cassiterita na capital Boa Vista, quantidade que já supera a de 2021, quando 80 toneladas foram recolhidas. Não há registros de apreensões de cassiterita em anos anteriores.

Os pedidos de pesquisa mineral ou de lavra garimpeira para cassiterita, estanho e minério de estanho em terras indígenas da Amazônia Legal também revelam o aumento da demanda por esse mineral.

Em 2019, foram 6 requerimentos, passando para 10 em 2020. No ano seguinte, o número quase triplicou, alcançando 27 solicitações.

Só neste ano, até meados de abril, já foram registrados 14 pedidos. Os dados são da plataforma Amazônia Minada, desenvolvido pelo InfoAmazonia, com base em informações da ANM (Agência Nacional de Mineração).

O padrão se repete na terra indígena Yanomami: dos 4 pedidos de pesquisa feitos sobre o território desde o ano passado, 2 são de cassiterita, 1 de minério de estanho e apenas 1 de ouro —alvo exclusivo de todos os 32 requerimentos feitos entre 2014 e 2020.

Policiais federais observam a carga de cassiterita ilegal apreendida em Boa Vista (RR)
Policiais federais observam a carga de cassiterita ilegal apreendida em Boa Vista (RR) - Polícia Federal/Divulgação

"Em Homoxi [uma das áreas mais destruídas pelo garimpo], quando acabou o ouro, foram para a cassiterita", afirma Júnior Hekurari, chefe do Condisi-YY (Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Yekuana). Segundo ele, as regiões de Xitei e Parafuri, próximas à fronteira com a Venezuela, também estão entre as mais danificadas pela exploração ilegal de minerais.

Procurado, o governo de Roraima disse que a gestão das terras indígenas é de responsabilidade do governo federal, mas ressaltou que participa de ações de fiscalização e operações organizadas pela União quando solicitado.

Já a Funai informou que suas bases continuam fazendo ações "de proteção, fiscalização e vigilância territorial, além de coibição de ilícitos, controle de acesso, entre outras atividades". A ANM, por sua vez, disse que "nenhum requerimento para execução de atividade mineral prospera em áreas com bloqueio legal", como as terras indígenas.

​Mercado em alta

A valorização do estanho vem incentivando o garimpo ilegal. Em março de 2021, o preço de uma tonelada do metal oscilou entre US$ 25 mil (R$ 117 mil) e US$ 30 mil (R$ 140 mil). Já em 8 de março deste ano, chegou a ultrapassar US$ 50 mil (R$ 234 mil).

"O estanho se beneficiou do isolamento social relacionado à pandemia, já que muitas pessoas estavam trabalhando em casa e compravam itens de tecnologia", diz Daniel Briesemann, analista de commodities do Commerzbank AG, o segundo maior banco comercial da Alemanha.

Para ele, a demanda segue alta devido ao conflito na Ucrânia, que impulsiona a compra de enlatados, além de gerar problemas no transporte.

"O consumo no mundo aumentou muito, e isso força a saída de mais minério", afirma Zé Altino. "Em volta de Roraima devem ter uns 15 compradores de cassiterita, pagando bem. Na minha época, 1 kg valia R$ 5, hoje está em R$ 100, R$ 120, R$ 160". O mineral extraído ilegalmente costuma ser vendido por valores abaixo dos de mercado.

"Antigamente, as pessoas deixavam a cassiterita para trás, não davam bola", diz Vladimir de Souza, professor de geologia na UFRR (Universidade Federal do Roraima). "Com o tempo os garimpeiros viram que ela podia render alguma coisa. Então o pessoal começou o contrabando de cassiterita também."

Segundo fontes ouvidas pela reportagem, os destinos mais comuns da cassiterita ilegal roraimense são Amazonas e Rondônia. Este último estado é o detentor das maiores reservas do mineral no Brasil e possui uma fundição no município de Ariquemes.

Essa alta na exploração da cassiterita pode também estar acarretando aumento no número de acidentes aéreos na região, devido à alta densidade do mineral —pequenos volumes já são muito pesados. Entre junho e dezembro de 2021, cinco desses incidentes no território yanomami foram noticiados pela imprensa.

"Uma tonelada e meia que ia aí, era?", questiona o narrador de um vídeo que mostra um helicóptero caído na mata. "26 sacos de cassiterita", afirma em seguida. As imagens, confirmadas pela reportagem, circularam em agosto de 2021.

​Garimpeiros ‘autorizam’ pouso da equipe de saúde

O saldo da corrida desenfreada por minérios como ouro e cassiterita tem impacto direto nas aldeias yanomami que vai além da devastação ambiental.

Segundo Hekurari, a Unidade Básica de Saúde Indígena de Homoxi, que deveria prestar atendimento a 615 moradores, está sem profissionais há sete meses por falta de segurança, já que a pista de pouso local é controlada pelos garimpeiros. Desativada, a unidade de saúde virou depósito para os mineradores clandestinos.

"Na pista, eles não deixam [a gente] pousar, tem que ‘rodar’ uns 30 minutos. Pedir, insistir e convencer que é da Saúde", afirma o indígena, que conta ainda que na região há relatos de parentes cooptados pelos garimpeiros em troca de alimentos, munição, cartuchos e espingardas.

Além disso, segundo relatório feito pela Hutukara Associação Yanomami, publicado na última segunda (11), mulheres, adolescentes e crianças têm sido vítimas de violência sexual praticada pelos invasores.

A pista de pouso é um dos meios pelos quais os garimpeiros acessam o território, ao lado de portos e heliportos. Na floresta, os invasores criam acampamentos improvisados, com barracões de madeira e lonas plásticas, onde funcionam os mais diversos negócios —fiscalizações já encontraram salões de beleza, prostíbulos, igrejas e até consultório odontológico nesses garimpos.

A promessa de enriquecimento que atrai legiões de garimpeiros para o território, porém, muitas vezes não passa de ilusão.

Uma cozinheira que chegou recentemente aos garimpos da região do Uraricoera disse à Repórter Brasil que o quadro é de engano e sofrimento. Segundo ela, são comuns as histórias de homens que vão embora frustrados após meses de trabalho que não rendem nada.

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