Desmate acelera no Brasil sob receio de maior fiscalização em 2023, dizem especialistas

Com disparada, 2022 se aproxima de efeito normalmente observado em anos de eleições municipais; ameaças de invasão citam as urnas, afirmam lideranças indígenas

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São Paulo

"Se o Lula não ganhar, vai ficar feio para vocês." A mensagem foi enviada na última semana a um líder da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no norte de Rondônia, em meio a uma série de ameaças de invasão ao território, demarcado em 1991.

"É muita terra para pouco índio, vai se chamar fazenda César", diz o autor dos textos, que não responde aos pedidos do interlocutor para que se identifique. Na rede social onde troca as mensagens, ele usa o nome de Júlio César e chega a citar a zona rural de Colina, a cerca de 20 km da terra indígena. "Até breve, irmão indígena, é só uma conversa", afirma.

No dia seguinte da troca de mensagens à qual a Folha teve acesso, indígenas relataram ameaças sofridas em um posto de gasolina na região e também o ateamento de fogo em uma casa dentro de uma das aldeias.

Segundo moradores, ambientalistas e pesquisadores, a explicação para o aumento da ofensiva de grileiros, madeireiros e garimpeiros nos últimos meses reflete a busca por aproveitar o que pode ser o último ano do governo Bolsonaro (PL), que fiscalizou, de acordo com o MapBiomas, menos de 3% dos alertas de desmatamento do país.

Árvores caídas e queimadas vistas de cima
Área desmatada no município de Apuí, no sul do Amazonas - Lalo de Almeida - 20.ago.2020/Folhapress

Nos cinco primeiros meses deste ano, o desmate na Amazônia foi 7,9% maior que no mesmo período do ano passado, conforme dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Como o início do ano compreende o período chuvoso, desfavorável à abertura de terrenos, a tendência é que essa diferença se amplie entre junho e setembro.

Segundo dados do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), obtidos através do SAD (Sistema de Alerta de Desmatamento), a Amazônia teve em 2022 os cinco piores meses no período de janeiro a maio dos últimos 15 anos, com uma devastação de 3.360 km² —8,8% superior à mesma época em 2021.

Em Rondônia, o aumento do desmate de janeiro a maio deste ano foi de 45,6% em relação a 2021.

"Com certeza isso é um efeito do último ano do Bolsonaro, uma espécie de despedida caso ele não se reeleja", afirma Ivaneide Cardozo, indigenista à frente da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, em Rondônia.

Em Santarém (PA), o aumento de explorações predatórias é percebido desde janeiro, quando o rio Tapajós chegou a mudar a cor das suas águas, geralmente cristalinas, por conta da lama levantada pela ação massiva do garimpo.

"A gente percebe que o pessoal está tentando aproveitar ao máximo, na dúvida do que vai ser o ano que vem, se vai mudar governo, se vai mudar Congresso, para todo tipo de maldades", afirma Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria, baseado em Santarém.

Atípica, a subida do desmatamento neste ano representa uma distorção do efeito eleitoral clássico. O padrão observado por estudos científicos aponta alta do desmatamento em períodos de eleições municipais, por incentivos de poderes locais a desmatadores em troca de mobilização de votos e financiamento de campanhas.

Um estudo da USP (Universidade de São Paulo) publicado no último ano na revista científica Conservation Letters mostrou que, entre 1991 e 2014, os anos de eleições gerais tiveram desmatamento adicional de 3.652 hectares. O efeito foi maior nas eleições municipais, quando o aumento médio foi de 4.409 hectares.

Já na Amazônia, o desmatamento em anos de eleições municipais subiu em média de 8% a 10% nos municípios em que os prefeitos concorriam à reeleição, afirma uma pesquisa feita entre 2002 e 2012 e publicada em 2018 na revista científica Environmental Economics and Management.

O estudo, conduzido pela Universidade Clark (EUA), também apontou o "efeito corrupção".

"Municípios com prefeitos altamente corruptos concorrendo à reeleição têm aproximadamente 50% mais desmatamento em períodos eleitorais em comparação com municípios sem um candidato à reeleição", afirma a pesquisa.

Os incentivos dados por governantes que se candidatam à reeleição incluem a extensão de crédito e o relaxamento de requisitos de licenciamento para os setores de agricultura, mineração e imobiliário, além da redução da proteção florestal por meio do rebaixamento, redução do tamanho e até desclassificação de áreas protegidas. É comum ainda, segundo o estudo da USP, a redução da vigilância e do financiamento dos órgãos de fiscalização.

Embora as duas pesquisas tenham usado fórmulas complexas para identificar o efeito eleitoral sobre o desmatamento de acordo com diversas variáveis, o fenômeno cíclico também é notável, no caso da Amazônia, a partir dos dados agregados em toda a região pelo Prodes (sistema de monitoramento do Inpe).

O gráfico anual do desmatamento na Amazônia mostra um padrão de crescimento em anos de eleição municipal. A segunda maior taxa da série histórica —27,8 mil km²— ocorreu em um ano eleitoral, 2004.

A exceção foi o ano de 2012, quando, apesar das eleições, registrou-se o mínimo histórico de desmatamento desde o início do monitoramento: 4.600 km².

"Isso foi porque conseguimos implementar o segundo ciclo do PPCDAm, o plano de prevenção e controle do desmatamento da Amazônia", explica André Lima, ex-diretor de políticas para Amazônia do Ministério do Meio Ambiente e atual consultor do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

Já nos anos de eleições gerais, não há um padrão claro na análise dos dados do Prodes. A exceção que se destaca no gráfico é a eleição de 2018, que elegeu o presidente Jair Bolsonaro. Naquele ano, o desmatamento cresceu de 7.500 km² para 9.700 km².

Em 2022, porém, avaliam especialistas, o incentivo ao desmatamento não se mostra mais ligado a uma promessa de facilitação da atividade em uma próxima administração, mas, sim, a um aproveitamento da liberação já concedida na gestão atual —e que pode ser perdida se houver mudança de governo.

"A situação ficou tão ruim que a agenda ambiental ganhou maior relevância e induziu promessas [de candidatos] no sentido oposto: de conter o desmatamento e parar as ilegalidades que foram prometidas na última eleição", avalia Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.

Ela cita como exemplo o fato de governadores de estados com maior controle do desmatamento, como Espírito Santo e São Paulo, terem viajado à última conferência de mudanças climáticas da ONU, a COP26, realizada em novembro de 2021 na Escócia.

"Isso salta aos olhos: os governadores colocaram a pauta ambiental nas suas plataformas eleitorais e quiseram mostrar lá fora que seus estados não têm desmatamento", diz Ribeiro. "Quando divulgamos os dados do último atlas da mata atlântica, os secretários queriam saber antes como seus estados figuravam. Mostram comprometimento", completa.

Diferentemente da Amazônia Legal, em que órgãos federais centralizam as funções de combate ao desmatamento, a responsabilidade pela conservação da mata atlântica fica a cargo dos órgãos estaduais.

O monitoramento do bioma com alertas mensais, no entanto, é recente e não oferece base comparativa entre os primeiros meses de 2022 e o mesmo período de anos anteriores.

"Seguramente o desmatamento piorou neste ano, mas de 2018 para cá tem um choque e ele ultrapassa esse fenômeno eleitoral", afirma Patricia Ruggiero, doutora em Ecologia pela USP e coautora do estudo voltado à mata atlântica.

"Houve uma derrocada das políticas ambientais e também a sinalização por parte de lideranças políticas. Pode ser que haja uma sobreposição dos dois fatores, mas vamos verificar lá na frente, na continuação da pesquisa", ela diz.

Outro componente que explica o efeito das eleições sobre as taxas de desmatamento é a convergência política entre poderes locais, regionais e federal.

"O alinhamento político pode facilitar a implementação de políticas, incluindo a desregulamentação e as permissões que podem influenciar diretamente no desmatamento", afirma o estudo da USP. A pesquisa identificou que, em anos de eleições gerais, o desmatamento é favorecido em regiões sob pressão cujos governos estaduais se alinham ao federal.

Malu Ribeiro ressalta que o aumento do desmatamento na mata atlântica foi maior nos últimos anos em estados aliados de Bolsonaro. "Isso ocorreu mesmo em estados que já sofrem consequências do desmatamento, como o Paraná, que enfrenta uma crise hídrica", destaca. O Paraná é governado por Ratinho Junior (PSD), pré-candidato à reeleição.

Em 2020, uma ação da Faep (Federação da Agricultura do Estado do Paraná) tentou anular a aplicação da Lei da Mata Atlântica, o que resultaria na anistia a desmatadores do bioma. A ação foi apoiada por um despacho do Ministério do Meio Ambiente —que recuou após manifestação do Ministério Público.

Questionado, o Ministério do Meio Ambiente não comentou sobre a relação entre a alta do desmatamento e o ano eleitoral, mas destacou que o sistema Deter, do Inpe, registrou em maio uma taxa 35% menor que a do mesmo mês do ano passado.

"Cabe destacar que os dados tratam de alertas para fins de fiscalização e que a área divulgada é uma estimativa", completa a nota.

A recomendação de técnicos do Inpe é que a comparação dos dados do sistema Deter seja feita entre períodos de no mínimo três meses, já que a cobertura de nuvens pode gerar números mais baixos em um mês, e mais altos no mês seguinte, quando o desmate é visto pelos satélites.

"O governo tem empenhado grandes esforços no combate aos crimes ambientais", diz a nota, que cita parcerias da pasta com outros órgãos do governo federal e a criação de um grupo de trabalho junto aos Estados Unidos.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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