Falta de olhar da sociedade está na origem dos conflitos na Amazônia, diz procurador

Ubiratan Cazetta afirma que ações judiciais contra a usina de Belo Monte ainda podem criar precedente favorável à política indigenista

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São Paulo

"Se a gente tivesse conduzido bem o debate sobre Belo Monte, a gente poderia ter uma política indigenista de respeito, que evitaria chegar onde nós chegamos hoje", afirma o procurador regional da República Ubiratan Cazetta, que atuou em quase 30 ações judiciais sobre a usina hidrelétrica.

Com 23 anos de experiência junto ao Ministério Público no Pará, o procurador trabalhou em casos que marcaram a gestão ambiental dos governos do PT e também de Bolsonaro.

Em 2020, pediu o afastamento do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles por conta do desmonte de órgãos ambientais e pela desregulamentação das normas —prática apelidada de "boiada" pelo próprio chefe da pasta.

Retrato de homem branco com cabelos grisalhos usando casaco e gravata azuis e camisa branca; ao seu lado, há uma parede decorada com quadrados feitos de madeira
Procurador Ubiratan Cazetta, presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) - Pedro Ladeira - 14.mai.2021/Folhapress

Nesta entrevista, ele analisa os conflitos socioambientais históricos na região e os desafios para a atuação do Ministério Público. "A nossa relação com a Funai é quase inexistente ou de desconfiança mútua", exemplifica Cazetta, que preside a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República).

Nesta terça-feira (14), às 19h, Cazetta participa do evento online Diálogos pelo Clima, promovido pelo Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade). As inscrições, gratuitas, podem ser feitas pelo site do projeto.

Para o procurador, a falta de olhar da sociedade está na origem dos conflitos na Amazônia. Ele afirma que o governo atual, por outro lado, apresenta um projeto para a região: o de destruição.

O sr. entrou com mais de 20 ações apontando problemas no licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, mas já considerava que a impedir seria uma missão impossível. Qual era a estratégia ali? Foram quase 30 ações. Do ponto de vista econômico real, a conta não fecha. De outro lado, tinha o maior investimento público em obras do Brasil, mais de R$ 40 bilhões, 75% deles com financiamento público pelo BNDES. Era ilusório achar que era possível barrar. O que a gente tentou fazer é deixar claro os erros. Perdemos quase todas as ações, mas minha conta não é essa.

O Supremo Tribunal Federal tem um processo de 2004 para julgar, que é o da consulta prévia às comunidades. Nós ganhamos essa no TRF [Tribunal Regional Federal], mas o governo e as empreiteiras conseguiram manter isso sem chegar ao Supremo por quase oito anos.

Caso o Supremo venha a julgar essa ação, qual será a consequência, após o dano consolidado? Só o efeito posterior de indenização. Mas tem um efeito transcendente a Belo Monte muito importante: a fixação da posição do Supremo sobre o que é consulta prévia a comunidades indígenas e quais os efeitos dela. Isso acaba sendo aplicado a todos os empreendimentos que possam afetar populações tradicionais. A discussão não perdeu o objeto.

O que está na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] é que o Estado deve consultar uma comunidade indígena toda vez que for tomar uma medida que pode afetá-la. A gente continua não fazendo isso. Você acaba colocando a consulta prévia só dentro do licenciamento ambiental. E faz isso a partir de uma decisão tomada sobre fazer aquela obra, sobre qual o desenho e quanto vai custar. Aí já não é mais uma consulta.

Agora temos o efeito concreto de Belo Monte para olhar o que poderia ter sido diferente. Também podemos ver o que foi apontado que poderia mesmo acontecer.

Poderia dar um exemplo das previsões sobre Belo Monte que viraram realidade? Falamos em 2011 sobre como o regime hídrico do Xingu afeta a produção de energia: por quatro meses você tem produção de energia no limite máximo da usina, por quatro meses vai caindo e, por outros quatro meses, fica parada.

Isso não é novidade para ninguém, mas ressurgiu em 2021 como se fosse uma coisa nova para a empresa. Agora não pode alegar que está tendo prejuízo. Você comprou esse projeto com esse desenho financeiro. Ou houve um erro de planejamento, ou um falseamento de dados na discussão judicial.

O que Belo Monte já revelava sobre a Lava Jato, ainda no governo PT, e até sobre a fragilização dos instrumentos de controle social, mais evidente no governo atual? O que Belo Monte apontava de cara: você tem ali um financiamento de campanha. A gente poderia ter entendido esse funcionamento do financiamento de campanha ligado a obras.

Quando se olha os resultados judiciais da Lava Jato, muita coisa foi entendida como competência da Justiça Eleitoral. Belo Monte já teria tido condições de deixar isso mais transparente e ter destinado uma investigação para essa linha.

Em relação à fragilização da política indigenista e de populações tradicionais, a gente volta para a questão da consulta prévia, que no fundo significa o reconhecimento da necessidade de ouvir e entender essas comunidades. Para isso precisamos reconhecê-las como existentes e merecedoras de atenção.

Se a gente tivesse conduzido bem o debate sobre Belo Monte, a gente poderia ter uma política indigenista de respeito que evitaria chegar onde nós chegamos hoje. Hoje você tem um total desprezo a isso. E tem uma cooptação crescente de lideranças indígenas, para questões da mineração, de uso de recursos. Belo Monte nos deu isso.

Como os conflitos socioambientais no Pará evoluíram até chegar no que vemos hoje, com uma defesa do governo a garimpeiros e madeireiros ilegais? A falta de um olhar da sociedade sobre a Amazônia está na origem disso, na minha visão. A gente não sabe o que fazer com a Amazônia e oscila entre o proteger tudo ou usar tudo.

Antes do governo atual, a gente já tinha um problema de indefinição sobre como queremos tratar a riqueza que é a Amazônia e, mais especificamente, o Pará.

O que mudou com o governo atual e que nos levou à ação de improbidade [contra o ministro Ricardo Salles] foi o contrário. Foi um olhar que disse: vamos trabalhar como terra arrasada, fazer a boiada passar, para usar uma expressão dele.

O sr. aponta uma diferença: os governos anteriores não tinham uma visão para a Amazônia, enquanto o atual tem um projeto para a região. Sim, um projeto de destruição. E isso vem daquela visão que existe na nossa sociedade, a gente tem que reconhecer, de que os europeus acabaram com suas florestas e agora querem que a gente proteja as nossas. É uma visão míope. Não é por que alguém botou fogo na própria casa que tenho que botar fogo na minha.

Diante do desmonte de órgãos ambientais e das "boiadas", por que o sr. acha que a ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro foi negada pela Justiça? Salles também foi absolvido em uma ação de improbidade em São Paulo. Haveria uma legalização ou uma aceitação social dessas políticas? A lei da improbidade trabalha com dois conceitos muito claros: prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito. O dano ambiental e climático tem um problema: como demonstrar o dano concreto causado pelo desmonte da política ambiental?

O que nos falta na judicialização desse tema é um instrumento que nos permita caracterizar que essa política foi danosa ao Estado brasileiro, foi intencional e por isso precisa ser punida.

De certa forma você tem razão nessa frase: nós naturalizamos o dano. Não a improbidade propriamente, mas que essas políticas possam ocorrer e que sejam desastrosas. E não tenho instrumento para punir.

O pacote de ações verdes que o STF passou a julgar em abril traz consistência ou precedente para ajudar nessa judicialização? Traz. Ele sinaliza que não pode desregulamentar e que é preciso ter participação da sociedade civil. É um primeiro passo.

A litigância climática cresce no mundo. O sr. vê isso acontecendo no Brasil? Quais os desafios para essa via judicial aqui? Vejo. São tentativas iniciais, mas há uma litigância que cresceu direto no Supremo. Mas o processo civil ainda é herdeiro de uma ideia da briga entre fulano e beltrano. Avançou um pouco para ações coletivas, mas ainda pensa sob o olhar do processo individual.

Quando levo para o juiz uma ação de mudanças climáticas, ele fala: "espera aí, sua ação é quem contra quem? Porque se for uma ação de política pública, não é meu papel".

Por outro lado, a evolução da ciência climática passou a permitir a responsabilização de atores individuais que causam, com suas emissões, as mudanças climáticas. Esses processos caminham em direções opostas? Exatamente. Agora a gente está no meio desse caminho: de a ciência conseguir fazer essa quantificação e individualização e do processo civil conseguir olhar isso.

Os nossos julgadores de hoje se formaram num direito e num olhar do mundo em que a ciência não tinha essa individualização que você está dizendo e o processo civil não tinha essa coletivização que temos hoje. Não fomos educados com essas lógicas e isso gera atrito. É um desafio.

Como a conjuntura política sob o governo atual impacta a atuação dos procuradores? Não tem como fugir do reconhecimento de que a sociedade brasileira está num momento de polarização muito grande e ela atingiu também os órgãos públicos.

A nossa relação com a Funai, com o órgão central da Funai, por exemplo, é quase inexistente ou de desconfiança mútua. Várias vezes o presidente da Funai representou contra procuradores por conta de suas atuações.

Adiantando sua fala prevista para o evento Diálogos pelo Clima, nesta terça, qual o papel e o desafio do Ministério Público diante das mudanças climáticas? Preciso ser um agente no processo de discussão e isso exige do MP qualificar seus membros e transformar isso em um dos temas de atuação da instituição, não só do procurador A ou B.

No MP, os processos foram feitos para se responder reativamente. Chegou inquérito civil, decidiu o caso e vai para a frente. Na mudança climática não dá para ser reativo, tem que ser proativo, senão você vai chegar só no que já está destruído. Esse é o desafio do MP: olhando os dados que a ciência já nos dá, sair do reativo e partir para o proativo.


RAIO-X

Ubiratan Cazetta, 53
É procurador regional da República da 1ª região e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. Há 26 anos no Ministério Público Federal, atuou por 23 deles no estado do Pará. Graduado em direito pela USP (Universidade de São Paulo), é mestre em direitos humanos pela UFPA (Universidade Federal do Pará).


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanha as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU em novembro, no Egito). O projeto tem financiamento da Open Society Foundations.

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