Cientistas norte-americanos descobriram grandes reservatórios de águas salgadas sob as geleiras da Antártida ocidental. A descoberta ajudará na compreensão dos mecanismos que estão movendo as geleiras rapidamente rumo ao mar, elevando o nível dos oceanos.
O gelo antártico se move constantemente e escorre para o mar pelas correntes de gelo que se formam no interior do continente. É um processo natural, que os cientistas monitoram com GPS e imagens de satélite.
O problema é que essas correntes estão muito mais aceleradas que o previsto. Isso pode significar que estamos diante de um colapso total das geleiras da Antártida ocidental, afirma Heitor Evangelista, especialista em mudanças climáticas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
As geleiras nas bordas do continente funcionam como uma barragem para a massa de gelo contida no interior, segurando e estabilizando-a, principalmente as geleiras de Pine Island, Getz e Thwaites, no oeste da Antártida. Elas já apresentam rachaduras e derretimento avançado.
O colapso das geleiras nessa região elevaria o nível do mar em 1,3 metro. Seria uma mudança extraordinária. Para efeitos de comparação, desde o início da Revolução Industrial até hoje, houve elevação de 18 cm no nível do mar.
"É um cenário muito instável e propício para um fenômeno cataclísmico, que pode mudar completamente o nível do mar global. E isso poderia ocorrer lenta ou catastroficamente", diz Evangelista.
O possível colapso dessas geleiras é o principal tema debatido entre estudiosos da Antártida atualmente, acrescenta o especialista.
Os reservatórios descobertos estão em uma região de instabilidade da Antártida, abaixo da corrente de gelo Whillans, que já move o gelo cerca de um metro por dia —algo muito rápido para o gelo glacial.
"É algo muito preocupante, daí a descoberta desses reservatórios de águas subterrâneas ter sido publicada na revista Science", diz o pesquisador.
Os reservatórios podem ser um dos fatores que explicam a maior velocidade das correntes de gelo, pois descobriu-se que eles alimentam os rios e lagos subglaciais, que lubrificam as bases das geleiras e aceleram seu deslizamento rumo ao mar, elevando o nível dos oceanos.
Pesquisas anteriores já haviam demonstrado que a inundação dos lagos subglaciais no leste antártico aumenta a velocidade do escoamento do gelo.
A instabilidade na parte ocidental da Antártida tem sido muito estudada há décadas. Grandes porções do seu leito encontram-se abaixo do nível do mar e inclinadas para o interior. O recuo das bordas do gelo nessa região permitiria a invasão da água do mar, causando uma rápida desestabilização e desintegração de toda a geleira.
Os cientistas têm registrado recordes nas temperaturas da Antártida, retrações e fissuras no gelo continental e flutuante (banquisas) em razão do aquecimento global provocado pela ação humana. Recentemente, uma onda de calor com temperaturas de até 40° C na parte leste da Antártida provocou o desprendimento de uma calota de gelo com superfície equivalente à da cidade de Los Angeles.
Os reservatórios recém-descobertos estão contidos em bacias sedimentares de um quilômetro de profundidade que ficam abaixo dos rios e lagos subglaciais e são separados destes por uma fina camada de tilito, rocha sedimentar comum em geleiras. Acima dos lagos e rios, está a grossa camada do gelo antártico com 2,5 km de espessura média.
Os reservatórios são compostos de águas marinhas "fósseis", alojadas aí há mais de 5.000 anos, quando o mar inundou a região em um período quente da Terra, em que as geleiras estavam parcialmente descongeladas. Especula-se que haja uma conexão entre os reservatórios e o mar atual.
"O próximo passo é incorporar as águas subterrâneas profundas nos modelos de estudo", afirmou a principal autora do estudo, Chloe Gustafson, da Universidade Columbia (EUA), em entrevista à Folha.
Os rios e lagos subglaciais já eram conhecidos pela ciência. Antes acreditava-se que o gelo repousava diretamente sobre o solo rochoso do continente. Hoje, sabe-se que estes aquíferos estão espalhados por toda a Antártida, como o gigante e profundo Lago Vostok, descoberto por uma equipe russa em 1996 e que tem microrganismos vivos em seu interior.
Para os pesquisadores, também exista vida nos reservatórios. "Nossas observações sugerem que as bacias sedimentares são provavelmente habitadas por comunidades microbianas adaptadas à água do mar", escreveram no artigo.
Gustafson contou à Folha que "seria incrível se pudéssemos acessar diretamente os reservatórios, mas, com os atuais equipamentos de perfuração subglacial, seria muito difícil. É um desafio de engenharia".
A descoberta foi feita após uma expedição à Antártida realizada em 2018 integrada por Gustafson, Kerry Key, Matthew Siegfried e a alpinista Meghan Seifert. Eles enfrentaram condições climáticas severas, com ventos congelantes de 80 km/h, como é possível assistir no vídeo (abaixo) produzido pela equipe.
Eles utilizaram um método inovador para a descoberta, as imagens magneto-telúricas. Equipamentos instalados na superfície do gelo emitem um sinal eletromagnético em direção ao solo e, depois, são analisadas as características dos sinais que retornam. Funciona com um radar. Como cada substância reage de modo diferente ao sinal enviado, é possível inferir as características dos materiais encontrados pelo caminho.
A pesquisa foi financiada pela National Science Foundation (EUA) e custou aproximadamente US$ 500 mil.
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