Descrição de chapéu The New York Times

A natureza se curou durante a antropopausa imposta pela pandemia?

Para ecologistas, é uma oportunidade ímpar para se descobrir mais sobre como os humanos afetam o mundo natural

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Emily Anthes
The New York Times

Numa primavera típica, aves marinhas em fase de reprodução —e humanos que as observam— migram para Stora Karlsö, uma ilha ao largo da Suécia.

Mas em 2020 a pandemia de Covid-19 cancelou a temporada turística, reduzindo a presença humana na ilha em mais de 90%. Na ausência dos humanos, águias-rabalvas ocuparam mais espaço, ficando muito mais abundantes que normalmente, descobriram cientistas.

Ilha Stora Karlsö; ecossistemas complexos e recuperação da natureza - @Stora Karlsö no Facebook

Pode parecer uma parábola bonita sobre como a natureza se recupera quando as pessoas desaparecem da paisagem —não fosse pelo fato de que os ecossistemas são complexos. As águias agora numerosas voavam repetidas vezes ao lado das falésias onde uma população protegida de airos, ou araus comuns, punha seus ovos, assustando as aves menores e levando-as a abandonar as saliências que ocupavam.

No meio da confusão, alguns ovos caíram dos penhascos; outros foram roubados por predadores enquanto os airos estavam distantes. O desempenho reprodutivo dos airos caiu 26%, como descobriu o ecologista marinho Jonas Hentati-Sundberg, da Universidade Sueca de Ciências Agrícolas. "Eles saíram voando em pânico e perderam seus ovos", ele explicou.

A pandemia foi e ainda é uma tragédia humana mundial. Para ecologistas, contudo, também vem sendo uma oportunidade ímpar para descobrir mais sobre como os humanos afetam o mundo natural. Para isso, eles documentaram o que aconteceu quando nós nos afastamos repentinamente desse mundo natural.

Um conjunto crescente de estudos pinta um retrato complexo da desaceleração da atividade humana, que ficou conhecida como " antropopausa". Ficou claro que algumas espécies se beneficiaram da nossa ausência, algo que condiz com as narrativas iniciais na mídia segundo as quais, sem pessoas perambulando por aí, a natureza estaria finalmente se recuperando. Mas outras espécies tiveram dificuldades quando foram privadas da proteção e dos recursos humanos.

"Os humanos exercem um papel duplo", comentou Amanda Bates, conservacionista oceânica na Universidade de Victoria, no Canadá. Segundo ela, os humanos agem "como ameaças à vida selvagem, mas também como guardiões do nosso ambiente".

Cientistas dizem que a pesquisa traz lições úteis para os conservacionistas, sugerindo que mesmo alterações modestas no comportamento humano podem ter grandes benefícios para outras espécies. É especialmente importante analisar essas alterações no momento em que a vida humana retoma o ritmo normal com entusiasmo e o turismo cresce no verão, potencialmente gerando uma "antropopulsão" de atividade intensa.

"Muitas pessoas vão querer recuperar o tempo perdido em matéria de viagens de férias, viagens de trabalho —vão querer recuperar o que deixaram de fazer na vida", disse o ecologista comportamental Christian Rutz, da Universidade de Saint Andrews, que introduziu o conceito de "antropopulsão" num artigo científico recente. (Ele e Amanda Bates também integraram a equipe que cunhou o termo "antropopausa").

"Os humanos vão e devem viajar e curtir a natureza", acrescentou. "Mas acho que podemos adotar modificações bastante sutis no modo como fazemos as coisas, e elas podem ter um impacto tremendo."

O positivo

Quando a pandemia chegou, muitas rotinas humanas foram suspensas de repente. Em 5 de abril de 2020 –o pico dos lockdowns devidos à pandemia– , 4,4 bilhões de pessoas, ou 57% do planeta, estavam submetidas a alguma espécie de restrição a seus deslocamentos, estimaram cientistas. Os deslocamentos de carro diminuíram em mais de 40%, e o tráfego aéreo caiu 75%.

Essas alterações repentinas permitiram aos pesquisadores diferenciar os efeitos dos deslocamentos humanos das muitas outras maneiras em que afetamos a vida de outras espécies.

"Sabemos que os humanos impactam os ecossistemas, mudando o clima. Sabemos que eles exercem impactos dramáticos ao modificar o uso da terra, como por exemplo destruindo habitats de animais para construir shopping centers", disse Christopher Wilmers, ecologista de vida selvagem na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. "Mas este estudo enfoca a pergunta ‘quais são os impactos da própria mobilidade humana?’."

Os cientistas descobriram que com os humanos encerrados em suas casas —com seus carros fechados nas garagens, os aviões em hangares, os navios parados em portos— , a qualidade do ar e da água melhorou em alguns lugares. A poluição sonora diminuiu na terra e debaixo da superfície do mar. Habitats desordenados pelos humanos começaram a se recuperar.

O Hanauma Bay Nature Preserve, no Havaí, um destino popular para praticantes de mergulho com snorkel, fechou em março de 2020 e permaneceu fechado por quase nove meses. "A pandemia resetou para quase zero os impactos provocados pelos visitantes", disse Ku’ulei Rodgers, ecologista do Instituto Hawai’i de Biologia Marinha especializada em recifes de corais.

Sem nadadores agitando sedimentos, a clareza da água melhorou 56%, descobriram Rodgers e suas colegas. A densidade de peixes, a biomassa e a diversidade aumentaram nas águas que antes viviam cheias de mergulhadores.

De fato, os cientistas descobriram que muitas espécies passaram a ocupar novos habitats quando os lockdowns da pandemia transformaram a "paisagem do medo", como ela é descrita às vezes por ecologistas.

"Todos os animais passam a vida tentando não morrer", explicou a ecologista Kaitlyn Gaynor, da Universidade da Colúmbia Britânica. Esse impulso de sobrevivência os leva a guardar distância de potenciais predadores, incluindo os humanos. "Nós somos barulhentos, desconhecidos e nos assemelhamos a seus predadores –e, em muitos casos, somos seus predadores", disse Gaynor.

Por exemplo, as onças pardas que vivem nas montanhas Santa Cruz da Califórnia normalmente guardam distância das cidades. Mas em 2020, depois que as ordens de quarentena entraram em vigor, os animais passaram a mais frequentemente selecionar habitats próximos à periferia urbana, descobriram Wilmers e seus colegas.

Wilmers especulou que as onças pardas estariam reagindo a alterações na paisagem sonora urbana, que normalmente seria repleta de sons de fala humana e de carros passando. "Mas, assim que esses estímulos auditivos foram embora, os animais tiveram uma reação tipo ‘vamos lá investigar se há alguma coisa para comer’", ele comentou.

O negativo

Mas os efeitos da ausência humana foram nuançados, variando segundo a espécie, o lugar e o tempo.

Vários estudos concluíram que, quando o tráfego de veículos diminuiu, na primavera de 2020, o número de animais selvagens atropelados e mortos por carros caiu. Mas o número de colisões entre animais selvagens e veículos voltou a subir, apesar de o tráfego de veículos ter continuado abaixo do nível normal, segundo relatou uma equipe de pesquisadores.

"Durante a pandemia ocorreram mais acidentes por quilômetro percorrido", disse Joel Abraham, pós-graduando de ecologia na Universidade Princeton e um dos autores do estudo. "Interpretamos isso como mudanças na utilização que os animais fazem do espaço. Animais começaram a usar estradas. E era difícil fazê-los parar, mesmo quando o tráfego começou a voltar aos níveis normais."

Os lockdowns parecem ter incentivado algumas espécies invasivas, aumentando a atividade diurna dos coelhos-da-Flórida na Itália, onde sua expansão rápida pode ameaçar as lebres nativas, e ao mesmo tempo dificultando esforços para controlar outras. Por exemplo, a pandemia adiou um projeto que havia sido planejado por muito tempo para abater camundongos predadores gigantes na Ilha de Gonçalo Álvares (ou Gough), no oceano Atlântico Sul, um habitat crítico para aves marinhas ameaçadas de extinção.

Os camundongos, que provavelmente chegaram com marinheiros no século 19, atacam os filhotes vivos e os comem, muitas vezes deixando grandes feridas abertas. "Eu os apelidei de ‘camundongos vampiros’", disse Stephanie Martin, diretora ambiental e de política de conservação de Tristão da Cunha, o arquipélago do qual a ilha de Gonçalo Álvares faz parte. Muitos dos filhotes não resistem aos ferimentos.

Cientistas estavam prestes a lançar um esforço grande de erradicação dos camundongos quando a pandemia começou, adiando o projeto por um ano. Na temporada seguinte de reprodução, com os camundongos gigantes ainda correndo soltos, não sobreviveu um único filhote de MacGillivray’s prion, uma ave ameaçada de extinção que se reproduz quase exclusivamente na ilha de Gonçalo Álvares. "Perdemos uma temporada reprodutiva inteira", disse Martin. "Foi mais um ano sem filhotes."

As lições a tirar

Enquanto as pessoas retomam sua vida normal, pesquisadores vão continuar a monitorar a vida selvagem e os ecossistemas. Se um ecossistema que pareceu beneficiar-se da ausência de pessoas sofrer quando as pessoas voltarem em peso, isso trará evidências mais fortes do impacto que exercemos.

"Essa reversão da intervenção experimental ou semiexperimental permite cientificamente que tenhamos insights realmente fortes sobre o funcionamento dos processos ambientais", disse Rutz.

Entender esses mecanismos pode ajudar especialistas a traçar programas e políticas públicas que canalizem a influência humana de modo mais cuidadoso.

"Se fortalecermos nosso papel de guardiões e continuarmos a controlar as pressões, poderemos realmente fazer o papel dos humanos no ambiente passar a ser sobretudo positivo", disse Carlos Duarte, ecologista marinho da Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia, na Arábia Saudita.

Quando a Hanauma Bay Nature Preserve foi reaberta, em dezembro de 2020, instituiu um novo limite ao número de visitantes que aceita diariamente. Hoje ela fica fechada dois dias por semana, sendo que antes da pandemia era apenas um dia, disse Rodgers.

Outras modificações também podem trazer benefícios, disseram especialistas. Construir passarelas para animais silvestres sobre rodovias pode impedir alguns animais de ser atropelados. Exigir que motores de carros e hélices de barcos sejam menos barulhentos pode reduzir a poluição sonora terrestre e marítima.

"Ninguém mais pode dizer que não podemos transformar o mundo inteiro em um ano, porque podemos, sim", disse Bates. "Já fizemos isso."

Tradução de Clara Allain

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