Ações voluntárias não resolverão crise climática, diz articuladora do Acordo de Paris

Para a advogada e ativista britânica Farhana Yamin, mobilização de governos deve endurecer, nos moldes das medidas emergenciais tomadas contra a Covid

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Cristiane Fontes Marcelo Leite
Oxford e São Paulo

Farhana Yamin, uma das principais articuladoras do Acordo de Paris, vê com preocupação a falta de vontade política dos países para o cumprimento dos compromissos climáticos acertados desde 2015 e as medidas voluntárias divulgadas como transformadoras pelas empresas de combustíveis fósseis.

Para a advogada e ativista britânica, esse não é o caminho para manter viva a ideia de frear o aquecimento do planeta em 1,5°C, como acertado em Paris.

Retrato de mulher com cabelos grisalhos presos; ao fundo é possível ver pessoas segurando cartazes
Farhana Yamin, advogada e ativista, durante protesto do grupo Extinction Rebellion em Londres - Peter Nicholls - 25.abr.2019/Reuters

"Vimos durante a crise da Covid e agora, com a guerra da Ucrânia e da Rússia, que quando há uma emergência, quando os políticos realmente sentem que há uma ameaça, eles mobilizam todos os instrumentos que os governos têm à disposição: exército, militares, profissionais de saúde, dinheiro, Tesouro. Não fizemos isso com as mudanças climáticas. É por isso que a COP26 ainda ficou aquém do esperado, assim como todas as outras COPs antes dela", critica, mencionando as conferências do clima organizadas pelas Nações Unidas. A mais recente ocorreu em novembro passado, na Escócia.

"As soluções não estão, na minha opinião, mais em medidas voluntárias, em pedidos educados."

Yamin, paquistanesa radicada na Inglaterra, acompanha as negociações climáticas há décadas, trabalhando na construção de coalizões políticas e oferecendo consultoria jurídica para diferentes países e grupos, da Comissão Europeia à Aliança dos Pequenos Estados Insulares.

Em 2018, se juntou ao grupo ativista Extinction Rebellion (XR), movimento hoje internacional criado na Inglaterra e conhecido por seus protestos performáticos. As manifestações demandam, entre outros pontos, que governos declarem emergência em relação aos problemas climáticos e que sejam criadas assembleias cidadãs para definir coletivamente ações.

Em abril de 2019, a advogada foi presa após colar as próprias mãos na calçada da sede da Shell em Londres. Esse e outros momentos da sua passagem pelo XR são revistos e detalhados no documentário "Rebellion", lançado no final de 2021 e ainda não disponível no Brasil.

Mulher e policiais estão agachados no chão descolando as mãos dela
Cena do documentário 'Rebellion' (2021) mostra a advogada e ativista climática Farhana Yamin com as mãos coladas na calçada da sede da Shell em Londres em abril de 2019, como parte de um protesto do grupo Extinction Rebellion; ela foi presa pela polícia depois que as mãos foram descoladas do chão - Reprodução

Atualmente, Yamin é vice-presidente do grupo consultivo de especialistas do Climate Vulnerable Forum, bloco que reúne 55 países com alta vulnerabilidade à crise climática, como Vanuatu, Maldivas e Bangladesh. Além disso, trabalha com instituições filantrópicas para apoio ao ativismo ambiental.

Nesta entrevista à Folha, Yamin defende a regulação das indústrias e dos países que causaram os maiores danos climáticos. "Quem polui menos não deve pagar o maior preço. Quem deve pagar mais são os poluidores", ressalta.

A ativista também aponta para a necessidade de envolver a imprensa e a indústria criativa no combate à crise climática.

"Precisamos do poder do cinema, da mídia, em vez de apenas ouvir os cientistas relatarem que nós temos X por cento do orçamento de carbono restante", diz. "Eles [os cientistas] só falam com uma parte do nosso cérebro, o intelecto, e estamos tentando usar a razão o tempo todo. E, às vezes, a razão não é suficiente."

Por que a última conferência do clima da ONU, a COP26, em 2021, não conseguiu cumprir as ambições relativas ao financiamento climático? Em poucas palavras, falta vontade política. Vimos durante a crise da Covid e agora, com a guerra da Ucrânia e da Rússia, que quando há uma emergência, quando os políticos realmente sentem que há uma ameaça, eles mobilizam todos os instrumentos que os governos têm à disposição: exército, militares, profissionais de saúde, dinheiro, Tesouro. Não fizemos isso com as mudanças climáticas.

É por isso que a COP26 ainda ficou aquém do esperado, assim como todas as outras COPs antes dela, porque essa falta de vontade política para abordar e enfrentar um problema tão imenso foi adiada, ano após ano. Todos os anos espera-se que os próximos políticos cuidem disso. Essa ideia de que é um problema futuro com o qual outra pessoa vai lidar é a principal razão pela qual estamos enfrentando, agora, consequências realmente horríveis. É por isso que a devastação climática já está aqui.

É possível ver isso no Brasil, no aumento dos incêndios florestais, na mudança nos padrões de chuva, nas enchentes e secas, na instabilidade alimentar e na escassez de água em todo o mundo.

Muitos dizem que a justiça climática precisa estar ao centro das soluções. Como fazer isso? Bem, parece um bom grito de guerra, e é bastante óbvio, que as pessoas e o planeta deveriam estar no centro de nossos processos decisórios. Todo mundo concordaria com isso. Mas a verdade é que as pessoas e o planeta não estão no centro das tomadas de decisões. O crescimento, o PIB e os negócios de sempre estão [no centro].

A justiça climática exige que os interesses das pessoas e do planeta sejam colocados em primeiro lugar. Quem polui menos não deve pagar o maior preço: quem deve pagar mais são os poluidores. A justiça climática exige que as pessoas que não causaram a crise não arquem com mais custos.

Como fazer isso acontecer, de forma prática? De forma prática, você pode fazer isso acontecer regulando as indústrias e os países que causaram a poluição, que causaram os maiores danos. Não dissemos à indústria global de combustíveis fósseis: queremos uma eliminação progressiva dos gases de efeito estufa e, portanto, vocês devem cessar a exploração de novos campos de petróleo e gás, por exemplo, e carvão.

Em vez disso, permitimos que eles continuassem pensando que podiam expandir. Isso também se aplica à agricultura, que é muito destrutiva. Nós dissemos: "Por favor, pare com o desmatamento" —como se fazer um pedido educado resolvesse o problema.

Pessoas com globos na cabeça, um representando o Estado brasileiro e outro a União Europeia, cravam garrafas nessas estruturas e um líquido vermelho, como se fosse sangue, escorre por suas roupas
Ativistas do grupo Extinction Rebellion em protesto em Bruxelas para chamar a atenção para o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips, indigenista e jornalista mortos na Amazônia em junho - Kenzo Tribouillard - 16.jun.2022/AFP

Nós não regulamos nem aplicamos legalmente as regras que já temos, inclusive, por exemplo, no Brasil, onde se protegem os territórios e os direitos dos povos indígenas, e as áreas que já deveriam estar regulamentadas.

As soluções não estão mais, na minha opinião, em medidas voluntárias, ou pedidos educados. Em uma emergência real, o governo diz, no caso da Covid, que você tem que fazer um lockdown, não pode sair, ou tem que trabalhar em casa. Ele não diz: "Por favor, trabalhe em casa".

A senhora foi uma das pessoas que ajudaram a elaborar o Acordo de Paris. Quais são atualmente as ações mais urgentes para atingirmos os objetivos, considerando novos desafios como a guerra na Ucrânia? Nos sete anos e meio que ainda temos nesta década, precisamos cortar as emissões globais aproximadamente pela metade se quisermos manter o alinhamento com o Acordo de Paris, perto de 1,5°C.

Isso significa que os países devem voltar agora à mesa [de negociações] todos os anos com mais ambição, não apenas deixar para 2025 ou para 2030, não apenas deixar para mais dois ciclos eleitorais. A segunda é, obviamente, reconhecer que a justiça climática exige que as pessoas mais vulneráveis não sofram impactos adicionais, e o apoio —financeiro, humanitário e ao desenvolvimento— deve estar alinhado. Então, é chegar aos US$ 100 bilhões/ano [valor prometido pelos países ricos desde 2009].

Há o reconhecimento de que outras fontes de financiamento, como a tributação dos poluidores, devem ser usadas agora na linha de frente porque há muitos milhões de pessoas que já chegaram ao ponto em que precisam urgentemente de apoio vital.

Também temos um entendimento —e, mais uma vez, Paris iniciou esse processo— que tem a ver com os atores não estatais. Eles também desempenham um papel muito importante, desde famílias até indivíduos, desde conselhos até prefeitos. Todos eles são líderes em suas áreas e estão realizando muitas ações e reconhecendo cada vez mais que precisam ter resiliência, promover adaptação e reduzir emissões, tudo ao mesmo tempo.

A senhora já fez críticas em relação a algumas das soluções baseadas no mercado, como mercados de carbono e medidas ESG. Por quê? Bem, eu era uma defensora muito entusiasta dessas soluções. Quando cheguei à faixa dos 30 e 40 anos, me tornei mais cética em relação a tais soluções, à medida que elas foram implementadas, porque elas tinham muito pouca integridade ambiental e não proporcionaram, em escala maior, os benefícios que deveriam.

Houve muito "greenwashing" [termo em inglês para o marketing de medidas falsamente verdes]. Houve muito uso indevido de créditos. Houve muita contagem dupla. Por isso eu me tornei mais cética.

Qual foi a agenda do Climate Vulnerable Forum na reunião da ONU sobre clima em Bonn [na Alemanha] em junho? E quais são as principais prioridades desse grupo até a próxima cúpula do clima [a COP27, que ocorrerá em novembro no Egito]? Juntos, os 55 países do Climate Vulnerable Forum representam cerca de 1,3 bilhão de pessoas. Em Bonn, um dos relatórios que eles produziram mostra o quanto suas economias já estão sofrendo com as mudanças climáticas.

Um dos principais achados é que eles seriam 20% mais ricos se as mudanças climáticas não tivessem acontecido. Isso já está impactando suas economias, elas não estão crescendo. Eles estão perdendo vários pontos percentuais do PIB, às vezes 5%, às vezes 1% —e, sabe, 1% de queda no PIB é muito.

Então, eles estão pedindo a todos os outros países que voltem à mesa de negociações já na próxima COP, em novembro, com ambições cada vez maiores, inclusive países como o Brasil.

Qual foi o motivo de a senhora ter saído do movimento Extinction Rebellion e quais foram os principais aprendizados dessa experiência? Eu estava cansada, exausta, esgotada. Ser ativista é bastante intenso. Então, saí, em grande parte, por causa disso e, também, porque sabia que a COP26 aconteceria no Reino Unido e eu queria voltar a trabalhar com fundações e instituições filantrópicas, que é o que estou fazendo agora.

Barco cor de rosa com o escrito 'tell the truth' (conte a verdade) está cercado de manifestantes em uma rua do centro da cidade
Manifestação do grupo Extinction Rebellion em Londres - Tolga Akmen - 18.abr.2019/AFP

Eu acho que o Extinction Rebellion foi uma conquista incrível, desencadeando uma onda de ações. Em 2020, diversas cidades, conselhos, atores não estatais e países declararam uma emergência climática, inclusive o Reino Unido. Eu acho que o Extinction Rebellion realmente ajudou nesse processo, junto com Fridays for Future, com pessoas como Greta [Thunberg] e outros líderes do Sul Global. Tenho muito orgulho do tempo que passei lá e acho que realmente criamos muita ruptura, o que foi bom.

A senhora disse em uma entrevista que todos deveriam ter a palavra "ativista" ou a qualificação "ativista" em seus currículos. Contudo, sabemos que nem todos estão dispostos a fazer isso. O que deveríamos pedir a essas pessoas, que não se sentem dispostas a se tornar ativistas, mas que podem contribuir para a causa? Bem, acho que todos podem mudar algo em suas vidas. Nem todos têm que participar de uma marcha. Nem todos precisam ser presos. Nem todos precisam fazer parte de um movimento.

Na verdade, isso tem a ver com examinarmos nossa dieta, sermos mais conscientes das nossas escolhas de moda e de compras. Então, eu acho que mudanças diárias nas nossas rotinas são realmente importantes. E pensar em como podemos reunir pessoas comuns, seja nas escolas, nas lojas, nas padarias, nas aldeias, nas prefeituras, no shopping centers, nessas discussões.

Por que precisamos de mais "storytellers" (contadores de histórias) do que cientistas para enfrentar a crise climática, como a senhora costuma dizer? Essa é uma ótima pergunta. Na minha cabeça, a ciência produziria todos esses livros e relatórios, conheceríamos a verdade e, então, nossos políticos perceberiam que é necessário agir, e agiriam.

Mas, no mundo real, a indústria de combustíveis fósseis e as grandes corporações contaram uma história melhor. Eles disseram: "Sim, os cientistas estão dizendo isso, mas tudo isso está longe, no futuro, mas vocês têm que se preocupar agora com seus empregos, com os seus eleitores". E foi nessa história que os políticos decidiram acreditar e agem com base nela.

Então, eu acho que precisamos do poder do cinema, da mídia, da indústria criativa, em vez de apenas ouvir os cientistas relatarem que nós temos X por cento do orçamento de carbono restante. Isso não faz sentido para ninguém.

Como a senhora tem tentado engajar o setor cultural? Artistas e organizações que trabalham no setor cultural, de museus a galerias de arte, estão pensando em uma COP da arte. Como seria essa COP da arte? Não são apenas artistas indo à COP e mostrando uma foto ou lendo um poema ou fazendo uma performance. Trata-se de imaginar uma governança e um cenário totalmente novos e diferentes.

Eu sou consultora da Tate Modern, que é uma das maiores galerias no Reino Unido, e muitíssimos turistas passam por aqui. Mas esse é um modelo viável? São exposições de sucesso que geram emissões muito altas de gases de efeito estufa e trazem milhões de turistas de avião para Londres para vê-las. Esse é o nosso conceito de arte?

Eu acho que a arte pode envolver todas as outras emoções e trazer nossos corpos à tona de uma maneira que relatórios e cientistas não conseguem. Eles só falam com uma parte do nosso cérebro, o intelecto, e estamos tentando usar a razão o tempo todo. E, às vezes, a razão não é suficiente. Também precisamos do coração, precisamos que todos os outros sentidos venham conosco nessa jornada.


RAIO-X

Farhana Yamin, 57

Formou-se em filosofia, política e economia na Universidade de Oxford. Nascida no Paquistão, mudou-se para a Inglaterra aos nove anos. Como advogada na área do clima, foi uma das principais articuladoras do Acordo de Paris, em 2015. Foi também coordenadora política do grupo de ativistas Extinction Rebellion entre 2018 e 2020. Atualmente, entre outras atividades, trabalha com fundações filantrópicas pelo fortalecimento do ativismo climático e é professora visitante da University of the Arts London. É membro da Chatham House e da Royal Society of Arts.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanha ainda as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU em novembro, no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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