Descrição de chapéu desmatamento

Plano do Ministério da Economia para BR-319 pode regularizar fazendas com indício de grilagem

Programa para viabilizar economicamente rodovia que liga Porto Velho a Manaus quer promover a destinação de 29 terras federais

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Fábio Bispo
InfoAmazonia

O governo federal vai priorizar a regularização de terras públicas não destinadas da União ao longo da BR-319, em uma das regiões mais desmatadas da Amazônia, como parte do Projeto de Governança Territorial da BR-319.

A proposta liderada pela Secretaria Especial do Programa de Parcerias e Investimentos, do Ministério da Economia, tem como objetivo viabilizar economicamente a obra de pavimentação que pretende reativar a ligação entre Porto Velho e Manaus. Entre os possíveis beneficiados, há indícios de grilagem em terras de, pelo menos, dois fazendeiros.

Segundo o projeto, áreas em 29 glebas federais do entorno da rodovia devem ser tituladas de forma definitiva.

Na última semana, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) emitiu a licença prévia para as obras no trecho do meio da BR-319. A expectativa do governo federal é iniciar as atividades ainda neste ano.

Vista aérea de uma estrada de terra cercada de floresta
BR-319 no trecho entre Igapó-Açú e Realidade, no Amazonas - Lalo de Almeida - 11.ago.2018/Folhapress

Por nunca terem tido destinação definida pelo poder público, essas terras do entorno da rodovia ficam sem proteção especial, diferentemente de unidades de conservação, terras indígenas, projetos de assentamentos e até mesmo da ocupação privada regularizada, que deve seguir regras ambientais.

O InfoAmazonia identificou 440 imóveis privados em 17 das 29 glebas. A maior parte já está certificada pelo Incra —o que significa o reconhecimento de que a propriedade não está sobreposta a outra área já destinada— e deve ter prioridade para titulação definitiva.

Entre esses imóveis, estão fazendas com indícios de grilagem e áreas desmatadas para extração ilegal de madeira. Só em 2021, foram 19,7 mil hectares de florestas derrubados nessas áreas.

A lista de possíveis beneficiados com a regularização das terras federais inclui os donos da Fazenda Acará, que controla mais de 20 propriedades registradas pelo Incra no entorno da BR-319 e coleciona denúncias de crimes ambientais e multas.

Os imóveis estão em nome de duas empresas, uma do ramo madeireiro, a Acará Bioflorestal, e outra que tem como atividade principal soja e gado, a Acará Agrohevea. O grupo tem pelo menos 11 fazendas certificadas na gleba Acará.

Em abril deste ano, o Ministério Público do Amazonas instaurou procedimento para apurar se a Acará Agrohevea foi responsável pelo desmatamento de 65 hectares às margens da BR-319 em Humaitá (AM).

As duas empresas do grupo foram autuadas 31 vezes pelo Ibama e multadas em R$ 79,9 milhões. As infrações ocorreram de 2018 a 2022.

Elas também respondem a nove processos do órgão por crimes ambientais, o que resultou no embargo de mais de 1.200 hectares.

Além disso, em 2020, técnicos do Incra requisitaram o cancelamento de três fazendas do grupo Acará por adulteração na matrícula de uma área com 1.190,5 hectares já certificada pelo Incra.

No despacho em que é pedida a anulação do registro da Fazenda Coracy, a área técnica diz: "essa matrícula não corresponde a área certificada e sim a um lote situado no perímetro urbano de Humaitá, na Transamazônica, com uma área de 450 m²". Mesmo assim, a fazenda ainda consta como certificada no Sistema de Gestão Fundiária do Incra.

Desmatamento na gleba Acará, no entorno da rodovia BR-319

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Vista aérea de lugar desmatado
Vista aérea de lugar desmatado

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As fazendas do grupo Acará pertencem aos empresários Eduardo Germano Dresch e Fernando Luiz Pasquali.

Ao InfoAmazonia, Dresch disse que os desmatamentos ilegais nas suas fazendas são "provocados por invasores" e que ele vai se defender na Justiça contra as acusações de crime ambiental. O fazendeiro negou ter apresentado documentos adulterados ao Incra.

"Nós nunca tiramos um metro cúbico de madeira das nossas áreas. Essas terras são da nossa família há mais de 50 anos, todas registradas e certificadas, mas temos muitos problemas com invasores", diz Dresh. Segundo ele, nenhuma das duas empresas donas das fazendas tem atividades na área. "Nós apenas preservamos."

A reportagem não conseguiu contato com Pasquali.

O Incra também não comentou as ilegalidades identificadas pela área técnica. O Ministério da Agricultura, ao qual a autarquia está ligada, não quis se manifestar.

De acordo com o Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), o grupo registrou cinco pedidos de licenciamento ambiental em nome da Acará Bioflorestal nos últimos anos, mas nenhuma licença foi concedida.

O Ministério da Economia não deixou claro como o programa de destinação de terras vai resolver situações de conflitos fundiários e ocupações em áreas já requeridas para unidades de conservação, como as reservas extrativistas e florestas estaduais. Procurada, a pasta disse que não vai comentar o assunto.

Além da regularização fundiária, o programa prevê a concessão de florestas públicas para manejo, a construção de portais de fiscalização, implantação de um zoneamento ecológico e o fortalecimento das unidades de conservação.

Parte das ilegalidades nessas terras foi apresentada em reuniões do grupo de governança da BR-319 pelos pesquisadores Lucas Ferrante e Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Juntos, eles assinam estudos que apontam a reativação da rodovia como um dos principais fatores para aumento do desmatamento da Amazônia.

"Muitas dessas áreas ocupadas às margens da rodovia são frutos de grilagem e desmatamento ilegal. Se o Ministério da Economia der continuidade ao processo de regularização dessa forma, estará entregando terras federais para os mesmos que promovem o desmatamento", afirma o biólogo Lucas Ferrante.

Em um dos estudos, os pesquisadores analisaram 14 áreas já certificadas pelo Incra no entorno da BR-319. Em todos os pontos foram constatadas ilegalidades como exploração ilícita de madeira, abertura de estradas, construções para facilitar a legalização das áreas, sinais de pesquisa mineral e venda de áreas públicas.

"O que verificamos é uma completa falta de governança", diz Ferrante. "Esses imóveis deveriam ser todos desapropriados, não legalizados como quer o Ministério da Economia."

Com 169 mil hectares, a gleba Acará abriga parte de uma área que é requerida para a Floresta Estadual de Tapauá e está entre as terras públicas mais desmatadas da Amazônia. Em 2021, foram derrubados 5.500 hectares de floresta nessa área, cinco vezes o registrado em 2020 (1.100 hectares).

O sul do Amazonas concentrou 83% de todo desmatamento no estado em 2021 (216 mil hectares de floresta nativa).

No Ministério da Economia, o projeto de governança da BR-319 é coordenado por Alex Garcia de Almeida, atual secretário de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação. Servidor de carreira da ANP (Agência Nacional de Petróleo), antes de assumir o programa da BR-319, Garcia foi coordenador-geral de licenciamento de portos, petróleo e gás do Ibama, nomeado pelo ex-ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente).

Garcia deixou o órgão ambiental após denúncias de que estaria favorecendo empresas do setor petroleiro. Uma das denúncias partiu da Asibama (Associação dos Servidores do Ibama) e o acusava de flexibilizar normas que limitam a emissão de poluentes de plataformas de petróleo.

Garcia não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem.

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