Projeto de lei acaba com 'boa-fé' no garimpo de ouro

Proposta, que tem apoio de grandes empresas do setor, reforça fiscalização do BC e rastreabilidade do metal

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Apesar de a extração do ouro estar frequentemente cercada de ilegalidades, basta uma declaração de "boa-fé" para que a venda seja feita de forma lícita no Brasil. Uma proposta surgida na sociedade civil e protocolada no Congresso neste mês torna as regras mais rígidas ao exigir a verificação da origem do produto em cada operação.

O PL (projeto de lei) 2159/2022, de autoria das deputadas Joênia Wapichana (Rede-RR) e Vivi Reis (PSOL/PA), quer acabar com esse instrumento da mera palavra dada e estabelecer uma série de critérios para regular o comércio de ouro, incluindo a necessidade de rastreabilidade e o uso de documentos eletrônicos. Os registros oficiais desse mercado ainda são feitos e guardados no papel.

 garimpo na Terra Indígena Munduruku
Garimpo na Terra Indígena Munduruku; projeto de lei busca regular comércio para coibir atividade ilegal - 25.07.22 - Amazônia Real/Amazon Watch

O PL também traz diretrizes para o Banco Central reforçar a fiscalização sobre as empresas que compram o ouro do garimpo, as DTVMs (distribuidoras de títulos e valores mobiliários).

Segundo Joênia, o ponto de partida da proposta foi a preocupação em deter o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas, mas o projeto também tem mecanismos para modernizar a venda do ouro no Brasil de maneira estrutural e impedir que o produto ilegal termine em joias e até produtos eletroeletrônicos pelo mundo afora.

"As pessoas muitas vezes compram uma aliança de casamento e não fazem a menor ideia que ali tem ouro de desmatamento e de invasão", diz a deputada. "Nesse projeto, não estamos falando especificamente de garimpo em terra indígena. Mas tratando de coibir ouro ilegal, que foi extraído de forma irregular, seja onde for".

Para permitir a rastreabilidade, o PL prevê que o ouro, logo após a extração, passaria a ser agrupado em lotes e receberia uma marcação molecular com isótopos de prata —uma espécie de código de barras único. O código passaria a constar de toda a documentação para transporte e venda do ouro, e as DTVMs não poderiam aceitar ouro sem a identificação.

O mecanismo de rastreabilidade previsto no projeto considera uma proposta elaborada pela ONG (organização não-governamental) Instituto Escolhas, e tem sido alvo de um amplo debate. A rastreabilidade do ouro foi tema de um seminário internacional em Brasília em junho, que reuniu a Polícia Federal e a Interpol, e conta com apoio do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) —que representa grandes grupos do setor, como Vale, Alcoa e Anglo American.

"Temos uma visão convergente e apoiamos o PL. O desafio agora é fazer com que ele avance no Congresso Nacional", diz Rinaldo Mancin, diretor de Relações Institucionais do Ibram.

Segundo Mancin, o garimpo que desmata e invade terras indígenas tem prejudicado as grandes companhias. "A lavra ilegal impacta a reputação de todo o setor de mineração e precisamos de um aperfeiçoamento regulatório, com rastreabilidade e regras mais rígidas para o ingresso do ouro nas DTVMs", afirma. "A declaração de boa-fé não é um instrumento compatível com o que estamos vivendo."

Levantamento realizado pelo Escolhas, com base em 40 mil registros de comercialização do metal, apontou que 229 toneladas de ouro vendidas no país, de 2015 a 2020, tinham indícios de irregularidades. Entre as quatro maiores DTVMs nesse mercado, 87% do ouro comercializado tinha indício de irregularidades.

"A mineração ilegal é uma das principais ameaças à Amazônia", diz Larissa Rodrigues, gerente do Instituto Escolhas. "Além de gerar o desmatamento, as contaminações por mercúrio são gravíssimas, [que têm gerado] uma emergência de saúde pública com destruição dos rios, e também contribui para associação com o crime organizado."

O projeto de lei também estabelece a digitalização da documentação. A nota fiscal, que hoje é em papel, passaria a ser virtual. Seria adotado para o ouro o GTC (Guia de Transporte e Custódia), instrumento já exigido para gado e madeira. Ainda seria preciso apresentar outros registros, como os números de lastros de mineração e ambiental, que identificam que a extração é feita em área regularizada.

O projeto também tenta sanar o conflito de interesse no setor, impedindo a propriedade cruzada. O dono de uma DTVM não poderia ter, ao mesmo tempo, lavra, refinaria, transportadora ou exportadora do metal, o que ocorre nos dias de hoje.

O texto da proposta deixa mais claras as responsabilidades do BC. Determina, por exemplo, que a instituição precisa enviar, anualmente, um relatório de fiscalização sobre as DTVMs.

O papel das DTVMs no garimpo ilegal já foi discutido diretamente com o presidente do BC, Roberto Campos Neto, em reunião no fim de julho que contou com a participação de representantes do Ibram, do Instituto Ethos, do Isa (Instituto Socioambiental) e do Escolhas. Na ocasião, Campos Neto passou a considerar a criação de um grupo de trabalho para tratar do tema.

Raoni Rajão, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e especialista na cadeia produtiva de ouro, diz que o projeto traz avanços importantes, principalmente com punições duras. "Ele também introduz uma série de mudanças administrativas que, apesar de também importantes, já poderiam ser feitas na lei atual, por órgãos como BC e ANM [Agência Nacional de Mineração], mas não são feitas por falta de vontade política", afirma.

Especialistas ouvidos de forma reservada pela reportagem concordam que diversas mudanças propostas pelo projeto poderiam ser implementadas sem a necessidade de um novo projeto de lei, e alertam ainda para o fato de que, no Congresso, a proposta deve enfrentar grande resistência e pode ser alterada, uma vez que há diversos parlamentares que defendem os garimpeiros e a flexibilização da atual legislação.

Questionada, a ANM afirmou que "não lhe cabe opinar sobre matérias de caráter legislativo".

Rodrigo Cataratas, presidente do Movimento Garimpo É Legal e candidato a deputado federal por Roraima —um dos estados com maior incidência de extração irregular de minérios—, diz que o projeto significa uma barreira para o desenvolvimento da sua região.

"Sou totalmente contrário a qualquer legislação que torne mais ainda burocrática a atividade econômica mineradora no estado de Roraima, pois as leis já são muito restritivas e impedem o avanço da economia roraimense. Criar novos empecilhos é subir os muros da burocracia", afirmou.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.