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Planeta em Transe mudança climática

Bolsonaro desperdiça crítica ambiental acertada aos europeus com mentira sobre a Amazônia

Presidente apequena imagem do Brasil com repetidas desinformações e não recebe atenção dos líderes globais

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Nova York

O presidente Jair Bolsonaro colocou o dedo na ferida dos europeus ao apontar que o aumento do uso de combustíveis fósseis é um grave retrocesso ambiental, em seu discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU na manhã desta terça-feira (20).

No entanto, o que desmorona a crítica é a falta de credibilidade internacional de quem assinou medidas contrárias à proteção ambiental durante os quatro anos de governo, aos olhos de todo o mundo.

A essa altura do jogo, não há espaço, tempo ou disposição dos atores internacionais para conferir qualquer credibilidade às falas de Bolsonaro —há uma diferença importante entre falar na ONU e ser ouvido na ONU.

No palco da ONU, Bolsonaro faz sinal de positivo com o polegar esquerdo levantado
Bolsonaro durante a 77ª Assembleia-Geral da ONU, nesta terça (20), em Nova York - Brendan Mcdermid/Reuters

Sabendo disso e prestes a encarar as urnas, Bolsonaro afunilou a audiência global da Assembleia-Geral para fazer um aceno exclusivo a seus apoiadores, forçando a imagem de representante antissistema a denunciar incoerências de potências globais.

"Países que se apresentavam como líderes da economia de baixo carbono agora passaram a usar fontes sujas de energia. Isso configura um grave retrocesso para o meio ambiente", disse, em referência aos europeus, que investem em novas infraestruturas e parcerias para importar combustíveis fósseis de outros países, preparando-se para o corte de fornecimento do gás russo.

A crítica é oportuna e faz coro com o ambientalismo. Os europeus, segundo diplomatas do bloco, chegam constrangidos para participar da Assembleia-Geral da ONU e da Semana do Clima de Nova York, que acontecem concomitantemente ao longo desta semana.

O contexto da guerra cria urgência sobre a segurança energética e deixa em xeque os planos de transição da União Europeia, que até então estava em uma posição mais confortável para pedir ao restante do mundo mais ambição nas metas de redução das emissões de gases-estufa.

A Alemanha tem sido fortemente criticada pelo investimento acordado com o Senegal para a produção de gás no país africano com vistas ao abastecimento alemão. O projeto vai na direção contrária dos esforços de cooperação internacional que buscam justamente convencer os países menos desenvolvidos a investirem diretamente em renováveis —evitando a dependência fóssil onde ela ainda não foi desenvolvida.

Caso fosse um governo disposto à cooperação internacional, Bolsonaro poderia ter costurado a crítica à oferta de uma alternativa estudada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria): a exportação de hidrogênio verde.

O presidente se limitou a citar a solução entre um rol de vantagens energéticas do país, como parte de uma defesa mal formulada diante das críticas internacionais, em vez de se posicionar como uma liderança da agenda climática a apontar o rumo da transição, a partir (e não apesar) do contexto de crise energética.

Em vez de usar o palco da ONU para engrandecer a imagem do Brasil, o presidente a apequenou com repetidas desinformações. "Na Amazônia brasileira, área equivalente à Europa Ocidental, mais de 80% da floresta continua intocada, ao contrário do que é divulgado pela grande mídia nacional e internacional", disse, baseando-se em uma distorção de dados. O fato de que quase 20% da Amazônia já tenha sido desmatado não transforma os outros 80% em área intocada.

São terras sob pressão de grileiros, garimpeiros e madeireiros, especialmente em terras públicas não destinadas, com pelo menos 17% de áreas degradadas, segundo o Painel Científico da Amazônia.

Pouco menos da metade do território amazônico é protegido por lei —com unidades de conservação ou terras indígenas— e, ainda assim, 68% dessas áreas sofrem pressões de degradação e desmatamento, além de impactos de construção de rodovias e obras de infraestrutura, segundo a Raisg (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada).

"Estes impactos [da guerra na Ucrânia] nos colocam a todos na contramão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável", afirmou Bolsonaro, embora seu governo tenha também atuado contrariamente a essa agenda. Em 2020, Bolsonaro vetou do plano plurianual os mecanismos de monitoramento e avaliação dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Nos corredores da sede da ONU, o discurso foi recebido com indiferença e teve baixa repercussão. A persistência em negar os dados de desmatamento na Amazônia somada a um tom mais contido do que nos anos anteriores tornou cansativa a fala que, em encontros no passado, já despertou reações indignadas de outros países.

A possibilidade de troca de governo no final do ano coloca os líderes globais em modo de espera. Questionado sobre a recepção do discurso de Bolsonaro, um assessor ligado à União Europeia respondeu que prefere aguardar o cenário eleitoral para comentar.

Em nota, o diretor de investimentos responsáveis do fundo dos países escandinavos Nordea, Eric Pedersen, disse que "o desmatamento registrado, a violência impune contra as comunidades indígenas, bem como o esvaziamento dos órgãos que fazem cumprir a lei falam por si só". "Tudo isso precisa ser remediado para criar um ambiente de investimento estável", completou.

Sem uma postura construtiva diante dos desafios do planeta, nem sequer o reconhecimento dos dados científicos sobre a Amazônia, o presidente não conseguiu aproveitar a oportunidade de falar aos líderes globais. O uso da ONU para um aceno exclusivo à base bolsonarista foi a única escolha a essa altura, quando o mundo já lhe virou as costas.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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