Descrição de chapéu desmatamento

Imóveis privados estão dentro de 422 mil km2 de terras públicas, indígenas e assentamentos

Área equivale à soma dos estados de São Paulo e Paraná; dados também mostram lentidão da validação de registros no país

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São Paulo

Propriedades privadas estão sobrepostas a mais de 422 mil km² de terras públicas, assentamentos e áreas quilombolas no Brasil. É, aproximadamente, como se os estados de São Paulo e do Paraná estivessem sobrepostos a essas terras.

Os dados são provenientes do Termômetro do Código Florestal, plataforma do Observatório do Código Florestal (rede com dezenas de entidades ambientais), que foi lançada na manhã desta sexta-feira (16). Trata-se de uma atualização da primeira versão da ferramenta, que foi colocada em ação em 2018.

Desse total de sobreposição, cerca de 254 mil km² de imóveis privados estão dentro de unidades de conservação, terras indígenas e florestas públicas. Outros cerca de 168 mil km² de áreas privadas cadastradas no CAR (Cadastro Ambiental Rural) se sobrepõem a territórios quilombolas e assentamentos delimitados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

A análise do observatório aponta, porém, que os números de sobreposição podem ser ainda maiores —e que o fenômeno é mais prevalente na região Norte.

Áreas desmatadas e queimadas dentro de terra indígena; uma casa é vista no canto da imagem
Área desmatada por grileiro dentro da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, no Pará - Lalo de Almeida - 26.ago.2019/Folhapress

Para chegar a essas conclusões, a plataforma cruzou as informações do CAR com os dados das categorias fundiárias do país.

Todo proprietário de terra no Brasil precisa autodeclarar seu imóvel rural no CAR, processo no qual devem ser apontados os limites da propriedade, com detalhamento sobre a sua composição, como rios, áreas de preservação permanentes e reserva legal —a fatia de vegetação nativa que deve permanecer intacta.

Apesar de ser autodeclaratório, após o registro os estados devem fazer uma análise do que foi computado, para verificar a veracidade das informações. Posteriormente, os proprietários de terras devem fazer a regularização ambiental, ou seja, corrigir possíveis passivos ambientais —por exemplo, uma reserva legal menor do que a necessária pela norma.

O CAR, atualmente, segundo os dados divulgados pelo Termômetro do Código Florestal, já conta com mais de 6,7 milhões de cadastros.

O problema, porém, começa no passo seguinte, a validação das informações. A nova ferramenta aponta que 23,8% das propriedades cadastradas passaram por algum tipo de análise e meros 0,49% imóveis rurais foram validados.

O baixo nível de validação das propriedades registradas no CAR traz riscos e trava o processo de implementação do Código Florestal, de 2012.

O primeiro problema pode ser o uso indevido do CAR no processo de grilagem, estratégia que já é conhecida há anos. Proprietários podem propositalmente usar os registros no sistema nacional para ocupar e potencialmente desmatar áreas que não são suas, como fatias de florestas públicas não destinadas.

Sem a validação, não há como saber os erros ou a má-fé presente nos registros.

Além disso, como dito anteriormente, se os estados não conferirem as informações, não há como avançar no chamado PRA (Programa de Regularização Ambiental). Seria nesse momento em que os responsáveis pelas propriedades que não estivessem em conformidade com o Código Florestal teriam que agir para se adequar à lei.

Em linhas gerais, desmatamentos anteriores a 22 de julho de 2008 foram anistiados pelo código. Qualquer supressão de vegetação posterior a isso necessariamente precisa ser autorizada pelos órgãos ambientais.

O Código Florestal determinou que as propriedades reservem uma área com vegetação nativa, a chamada reserva legal. Na Amazônia legal, em linhas gerais, a reserva precisa ocupar 80% da área de propriedades que se encontram em regiões de floresta, enquanto em outros biomas o índice cai para 20%. Na reserva podem ser feitas práticas de manejo sustentável.

Outro ponto regulamentado são as APPs (Áreas de Preservação Permanente), como margens de rios e lagos, e os morros, que também devem ser preservados com a vegetação natural.

Há outros mecanismos que, sem a validação das propriedades, acabam em situação difícil para execução. Um deles é um mercado de Cotas de Reserva Ambiental.

Em resumo, proprietários que tenham reservas legais maiores do que é exigido pela lei podem legalmente "transformar" esse pedaço a mais em cotas. Elas, então, podem ser virtualmente adquiridas para compensar imóveis rurais do mesmo bioma que tenham deficit de reserva.

Com a demora para implementação, de fato, do código, a sociedade e os setores produtivos também perdem na seara dos serviços sistêmicos, com falta de água e de polinizadores, entre outros, diz Raoni Rajão, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador no Wilson Center em Washington, EUA, que participou do projeto do Termômetro.

"Precisamos enfatizar sempre que a implementação é uma reparação de infraestrutura verde essencial para vários setores da economia", afirma Rajão.

O pesquisador critica a falta de priorização dos governos para avanço do código, sem a destinação adequada de recursos e pessoal. Ao mesmo tempo, aponta o enorme esforço necessário para que as esferas estaduais avancem para além dos registros no CAR.

Rajão ainda destaca dificuldades mais conceituais relacionadas aos dispositivos do código. Uma delas é o fato de os proprietários terem que apresentar o desenho de suas propriedades —sendo necessária, normalmente, a contratação de pessoas para tal.

O pesquisador aponta como possível solução o projeto CAR 2.0, mecanismo desenvolvido na UFMG —a universidade tem dado apoio aos estados de Minas Gerais e Pará para implementação do sistema— para simplificar a validação dos registros.

O sistema criado pela instituição identifica e separa automaticamente os imóveis rurais que estão adequados ao Código Florestal, sem passivos ou sobreposições, e os que têm problemas como falta de reserva legal ou desrespeito a APPs.

"Foca nos que têm problemas. Focaliza o esforço onde você vai ter resultado ambiental", explica o pesquisador.

Durante a apresentação do Termômetro, Rajão ressaltou que os passivos de reserva legal e APP estão concentrados em poucos imóveis (cerca de 5%), normalmente em médias e grandes propriedades.

Rajão também destaca a questão da transparência na implementação do código. Ele cita imóveis que têm passivos, como desmatamentos, mas que continuam publicamente no sistema do CAR com o cadastro ativo, sem apontamento sobre a situação irregular —o que poderiam impedir financiamento em bancos, por exemplo.

"Enquanto não tiver consequência, é difícil que isso avance. E não tem como não ler essa falta de transparência como uma certa complacência", afirma.

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