De perdas econômicas a aumento na violência, mulheres são mais impactadas pelas mudanças no clima

Gênero é fator importante para que efeitos de migrações e eventos extremos sejam sentidos de forma desproporcional

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São Paulo

Migração, exposição à violência, casamento infantil, evasão escolar, perda de renda. Estes são alguns dos problemas sociais causados pela crise do clima —e que impactam as mulheres de forma desproporcional.

As mudanças climáticas já fizeram com que eventos como tempestades, secas, ondas de calor e furacões sejam mais frequentes e intensos. Esse cenário deve ficar ainda pior, dependendo do quanto a humanidade conseguir reduzir as suas emissões de carbono. Porém, quando esses fenômenos atingem populações que já são mais vulneráveis, as consequências são ainda mais graves.

Mulheres e crianças africanas caminham em meio à savana queniana em busca de água enquanto carregam recipientes plásticos
Mulheres e meninas são especialmente afetadas pelos extremos climáticos, como as da comunidade pastoral Turkana, na cidade de Lodwar, no Quênia, na seca que atingiu a região em 2022 - Tony Karumba - 27.ago.2022/AFP

Segundo estimativas do Instituto para Economia e Paz, por exemplo, o número de desalojados por causa de desastres climáticos pode chegar a 1,2 bilhão até 2050. Atualmente, a ONU (Organização das Nações Unidas) aponta que 80% das pessoas forçadas a sair de suas casas por causa das mudanças climáticas são mulheres, o que gera uma série de consequências que variam ao redor do mundo.

Um relatório publicado no ano passado pelo UNFCCC, o braço da ONU voltado para as mudanças climáticas, aponta que, em alguns países africanos, homens que vivem em áreas rurais atingidas por desastres climáticos, como secas extremas, costumam migrar para centros urbanos em busca de emprego. As mulheres são deixadas para trás e precisam assumir, além do cuidado dos filhos, o comando da lavoura, mas, muitas vezes, não têm o direito de possuir terras garantido.

Com isso, elas não conseguem acessar financiamentos que poderiam ajudar na recuperação da produção e na subsistência. Especialmente no sul global, taxas de analfabetismo e falta de acesso à educação também são mais altas entre as mulheres, o que acrescenta mais uma camada de dificuldade para receber esses fundos.

De acordo com a organização Save the Children, mulheres e meninas representam mais de 40% da força de trabalho agrícola e são responsáveis por até 80% da produção de alimentos.

Estimativas da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, apontam, ainda, que se as mulheres tivessem o mesmo acesso aos recursos que os homens, poderiam aumentar a produtividade de suas fazendas em 20% a 30%, o que poderia elevar a produção agrícola total nos países em desenvolvimento em de 2,5% a 4%.

Os padrões sociais que impõem às mulheres e meninas tarefas de cuidado com o lar e com outros familiares são outro aspecto acentuado em meio às dificuldades econômicas provocadas pelas mudanças climáticas. Muitas vezes, cabe a elas a responsabilidade de garantir água e comida.

"Se elas estão em um lugar muito impactado pela seca, passam a caminhar uma distância muito maior para buscar água para a família", exemplifica Isvilaine Silva, assessora de engajamento e mobilização do Observatório do Clima, acrescentando que isso as deixa mais vulneráveis ao assédio.

O estudo da ONU indica, ainda, que muitas meninas são obrigadas a deixar de estudar para tomar conta da casa após eventos climáticos extremos.

Crises, assim como aconteceu durante a pandemia de Covid-19, também contribuem para um crescimento de diversas formas de violência de gênero.

"O estresse econômico induzido por desastres e mudanças climáticas pode levar a casos de casamentos infantis, precoces e forçados como estratégia de enfrentamento à pobreza", afirma Christiane Falcão, especialista em direitos humanos da ONU Mulheres Brasil.

Além disso, o aumento da pobreza pelo impacto na produção de alimentos ou por menos oportunidades de trabalho também entra na conta. "São tendências que as empurram para a dependência financeira, razão principal de entrada e permanência em relações violentas intrafamiliares e para sua exploração sexual", diz ela.

Um exemplo pode ser encontrado nos Estados Unidos. Um estudo de 2010 revelou que após o furacão Katrina, que devastou a cidade de Nova Orleans, em 2005, a violência física contra as mulheres aumentou 98%.

"A mudança climática aumenta a violência também em países onde há aumento do nível do mar e essa população é obrigada a sair dali", explica Silva. "São mulheres que chegam a outros países, outras comunidades e ficam nessa posição de exposição, sem ter para onde ir e acabam tendo que se colocar nesse papel de risco, ficando mais vulneráveis".

As mulheres também são mais sujeitas à agressão sexual quando vivem em campos de refugiados ou abrigos.

Mwanahamisi Singano, líder sênior de Políticas Globais da ONG americana Wedo (sigla em inglês para Organização de Meio Ambiente e Desenvolvimento para Mulheres), ressalta que normas sociais também impactam a capacidade das mulheres de se adaptar diante de crises climáticas ou ambientais.

"Por exemplo, em Bangladesh, em 1991, houve um ciclone e 91% das pessoas mortas eram mulheres e crianças. As normas de gênero que privam mulheres e meninas de seu direito de atingir todo o seu potencial e desenvolver habilidades que salvam vidas, incluindo nadar, tornaram mais difícil para elas escaparem", conta.

As mulheres também são historicamente sub-representadas em posições de tomada de decisão e postos de elaboração de políticas públicas —o que não é diferente nos painéis científicos e fóruns de discussão relacionados ao clima.

Dados da Wedo apontam que na conferência do clima da ONU de 2022, a COP27, menos de 36% dos representantes oficiais dos países eram mulheres. O número é melhor do que o registrado no ano anterior (34,8%), mas esses índices ainda são mais baixos do que os de COPs pré-pandemia: em 2018 e 2019, a participação feminina passou de 37%.

As especialistas destacam, ainda, a importância de tratar as consequências das mudanças do clima para mulheres sob a lente da interseccionalidade, abordagem que leva em consideração como diferentes opressões se somam e atingem as pessoas.

"Os efeitos da mudança climática não são sentidos de forma igual, nem as culpas são igualmente partilhadas. E enquanto mulheres e meninas estão entre os maiores atingidos, isso é ainda mais significativo para mulheres no sul global, em pequenos países-ilhas, para mulheres não brancas, de baixa renda e de movimentos de base, para mulheres campesinas, migrantes e tantas mais enfrentando a marginalização interseccional", diz Singano.

Falando especificamente do caso brasileiro, Falcão afirma que, como as mulheres negras estão no topo dos piores índices socioeconômicos no Brasil (como renda, violência, acesso à saúde, educação, trabalho e proteção social), elas são ainda mais impactadas pelas mudanças climáticas.

"As mulheres indígenas, quilombolas, extrativistas e de modo de vida tradicional são também desproporcionalmente impactadas", acrescenta, explicando que isso se deve à sua segurança alimentar, práticas de manutenção da saúde e modo de vida estarem diretamente ligados à natureza.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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