Programa em escolas tenta romper silêncio sobre impacto da mineração em Minas

Iniciativa de universidades federais visa capacitar professores para abordar assunto em sala

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Anna Virginia Nascimento
Juiz de Fora (MG)

Nas escolas mineiras atingidas pelo rompimento da barragem na região de Mariana, não há debate crítico sobre os impactos da mineração nas comunidades. A conclusão, baseada em pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade Federal de Ouro Preto, tornou-se a base de uma formação voltada a professores iniciada em maio de 2022.

O trabalho dos pesquisadores que integram o Gema (Grupo de Estudos Educação, Mineração e Meio Ambiente) é parte principal de um programa de reparação lançado em 2021 com o objetivo de reverter o "silêncio pedagógico", termo cunhado pela docente da UFMG Maria Isabel Antunes-Rocha, doutora em educação.

As pesquisas identificaram uma intenção de evitar a problematização da atividade minerária, em especial em relação aos riscos sociais e ambientais. Ao ouvir relatos dos professores afetados, o grupo de estudos observou desconhecimento sobre os perigos da barragem.

Maria Isabel afirma que o conhecimento auxiliaria em ações emergenciais e na busca por direitos.

Pensando nisso, UFMG e UFOP criaram o Programa de Extensão Escola do Rio Doce, que tem diversas frentes. O objetivo é capacitar cerca de 6.200 professores que trabalham nas escolas públicas dos 36 municípios mineiros afetados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.

Curso do rio Doce nos morros da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), que rompeu em novembro de 2015
Curso do rio Doce nos morros da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), que rompeu em novembro de 2015 - Julia Pontés

O projeto recebeu R$ 40 milhões da Fundação Renova, entidade mantida pelas mineradoras Samarco, BHP Billiton e Vale.

O plano, que será conduzido pelas duas universidades federais, inclui vagas para curso de pós-graduação, a produção de material didático e a formação de duas turmas no curso de aperfeiçoamento Mineração, Rompimento de Barragem e Revitalização: Desafios para a Educação.

A primeira turma começou no primeiro semestre de 2022 com 3.000 educadores, que participaram de quatro meses de capacitação com encontros remotos semanais. Foram realizadas leituras, rodas de conversa e discussões.

No final do curso, os participantes elaboraram um plano pedagógico experimental entregue aos tutores em dezembro de 2022, com propostas de ações para sala de aula. Cada escola terá dois planos selecionados pelos coordenadores do curso. Os planos darão origem a material didático que será compartilhado com as escolas da região da Bacia do Rio Doce.

Para a professora Ângela Souza Luz, tutora de um grupo de educadoras no município de Barra Longa, esse curso deveria ter sido feito antes. "Assim, na época do rompimento, teríamos consciência sobre o que aconteceu", afirma.

A escola onde Ângela leciona há 30 anos foi atingida pela lama quando rompeu a barragem de Fundão. Apesar da proximidade geográfica com a mineração, o assunto era distante.

A professora conta que, no dia do desastre, quando os rejeitos já haviam atingido municípios próximos, as aulas noturnas foram realizadas como em qualquer dia. De madrugada, a lama atingiu Barra Longa e destruiu o primeiro andar da escola.

Por quatro dias, as atividades escolares foram interrompidas. Na volta, as aulas aconteciam no segundo andar, enquanto as máquinas trabalhavam no piso abaixo. "Foi um período de transtorno, e a gente não falava nada sobre isso, nem com as pessoas de fora que estavam trabalhando, nem com os alunos. Um silenciamento total", diz.

Ao colher relatos de professores das escolas diretamente atingidas, integrantes do Gema observaram sentimentos contraditórios em relação ao rompimento. De um lado, existe a visão da mineração como responsável pela renda de várias gerações; de outro, estão os danos causados pelo desastre.

Mestre em educação e tutora no curso de aperfeiçoamento no município de Mariana, Gissele Quirino observa de perto esse conflito entre os professores. "Estamos buscando o equilíbrio entre os pontos positivos e negativos da mineração", diz.

A educação ambiental deve se afastar da neutralidade, na opinião de Angélica Cosenza, que coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Ambiental da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).

Para a pesquisadora, é preciso que a educação prepare a comunidade para atuar contra os processos de destruição, injustiça e racismo ambiental –conceito usado para explicar que certos grupos são mais vulneráveis aos efeitos da destruição da natureza.

"Devemos questionar, refletir e levar os alunos a argumentarem sobre a realidade em que vivem, propondo novos caminhos", diz Márcia Barbosa, participante do curso que leciona geografia na rede pública em Raul Soares (MG).

O grupo de trabalho de Márcia desenvolve atividades relacionadas à Bacia do Rio Doce, considerando o papel dos afluentes na qualidade da água na bacia.

"Pesquisamos sobre os rios da nossa cidade que deságuam no Rio Doce; produzimos uma maquete sobre a bacia hidrográfica e entendemos que cuidar da água no nosso município é, também, lutar pela revitalização da bacia", diz Lindsey Tavares, 13, aluna do 8º ano da Escola Estadual Benedito Valadares.

Independência do projeto depende de leitura crítica da realidade

O financiamento do Programa de Extensão Escola do Rio Doce pela fundação das mineradoras é um risco para sua autonomia, afirma Thiago Alves, coordenador do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) em Minas Gerais.

"O criminoso não é afastado da vítima. As empresas que cometeram o crime controlam o dinheiro da reparação, controlam os recursos e controlam, inclusive, a Fundação Renova", afirma.

Na opinião de Alves, projetos de educação ambiental devem ser debatidos em espaços coletivos utilizados pelas pessoas atingidas, como movimentos sociais e as comissões de atingidos, para evitar a reprodução de narrativas das empresas.

"É preciso garantir ferramentas independentes que levem para as escolas uma leitura crítica da realidade, da atuação das empresas e do crime", afirma.

Angélica, da UFJF, corrobora com essa visão. A pesquisadora diz que os discursos produzidos pelas mineradoras reforçam a ideia da atividade como portadora de progresso e desenvolvimento, além de criminalizar os movimentos de resistência. Para ela, as lutas ambientais são a única ferramenta capaz de enfrentar o poder das empresas e conquistar direitos.

Em relação ao Programa Escola do Rio Doce, Maria Isabel, da UFMG, afirma que a Fundação Renova não interfere no conteúdo do curso e que a capacitação é um direito de reparação da comunidade atingida.

Questionada sobre a relação com as mineradoras Samarco, Vale e BHP, a Fundação Renova informou que é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, instituída por meio de um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta assinado entre Samarco, suas acionistas Vale e BHP, poder público, autarquias, fundações e institutos.

A Fundação afirma que tem o objetivo exclusivo de gerir e executar os programas e ações de reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. Sobre o Programa Escola do Rio Doce, a Renova informa que é responsável pelo financiamento e firmou convênios com UFMG e UFOP para que as instituições de ensino executem o projeto em Minas Gerais.

A Secretaria de Educação de Minas Gerais informou, por meio de nota, que os projetos políticos pedagógicos devem oferecer processo formativo em educação ambiental direcionado para a relação da mineração com a sociedade. Além disso, afirmou que o Programa Escola do Rio Doce está vinculado à carga horária extraclasse dos professores.

Esta reportagem foi produzida como parte do 7º Programa de Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha de S.Paulo, que teve apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Albert Einstein

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