Ferramenta central para regularizar ambientalmente as propriedades rurais no país, o CAR (Cadastro Ambiental Rural) ainda engatinha na sua implementação, enquanto sofre tentativas de desregulamentação, as chamadas "boiadas".
Apenas 12% dos cadastros começaram a passar por análise dos governos estaduais e somente 2% tiveram análises concluídas em todo o país. Os dados são do estudo "Onde estamos na implementação do Código Florestal - Radiografia do CAR e do PRA nos estados brasileiros", publicado nesta quinta-feira (13) pela Climate Policy Initiative, instituição afiliada à PUC-Rio.
"Se mantivermos esse ritmo de implementação, o Código Florestal corre o risco de perder a credibilidade e se tornar uma lei no papel", afirma o relatório, que é atualizado anualmente.
A lentidão no processamento dos cadastros barra o passo seguinte: a adesão ao PRA (Programa de Regularização Ambiental). Nessa etapa, com base nas informações conferidas pelo CAR, o proprietário adere a um compromisso para recompor áreas desmatadas irregularmente na propriedade, como porções de reserva legal ou áreas de preservação permanente.
O Congresso quer ampliar o prazo para a adesão ao PRA. No fim de março, a Câmara aprovou a MP (medida provisória) 1.150/2022, que dá um ano para o proprietário aderir à regularização após a convocação do órgão ambiental. O prazo previsto pelo Código Florestal é de 180 dias. A MP ainda faz outras alterações, propondo também afrouxamentos na Lei da Mata Atlântica. O texto ainda passará pelo Senado.
Apenas sete estados completaram o processo de implementação do PRA: Acre, Rondônia, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia e Minas Gerais.
No entanto, a adesão dos proprietários ainda é baixa. O estado de Rondônia já analisou e encontrou passivos ambientais em 5.999, mas apenas 170 deles viraram termos de compromissos ambientais assinados pelos proprietários.
Em Mato Grosso, dos 4.610 cadastros com passivos ambientais, apenas 716 aderiram à regularização. A discrepância é menor no Acre, onde 372 termos foram assinados, do total de 875 cadastros com pendências ambientais.
"As dificuldades vão desde a resistência dos produtores em se comprometerem com a regularização ambiental até o desconhecimento de soluções de restauração florestal produtiva ou multifuncional", avalia o relatório.
A gestão mineira criou um atalho para proprietários que queiram se adiantar na regularização ambiental: eles podem autodeclarar um compromisso de regularização antes mesmo da análise do CAR.
O PRA autodeclarado, como é chamado no estudo, ainda seria posteriormente avaliado pelo governo. No último ano, o estado assinou dez termos de compromissos com proprietários rurais.
Outra estratégia é experimentada por Mato Grosso, que condicionou a conclusão da análise do CAR à adesão ao PRA. Ao juntar as etapas, o proprietário rural é encorajado a aderir à regularização ambiental para ficar em dia com o cadastro.
Em meio às novas estratégias experimentadas pelos estados, o estudo também alerta para novas "boiadas" na regulamentação estadual.
O estado de Goiás aprovou, no último ano, uma lei mais flexível que o Código Florestal, que anistia os desmatamentos ilegais ocorridos antes de 2008. A lei estadual 21.231/2022 amplia esse prazo para desmates ocorridos até 2019.
Questionada se a medida seria ilegal, a secretaria ambiental do governo de Goiás negou que a lei estadual se oponha ou flexibilize o Código Florestal.
Em nota, o órgão afirmou à reportagem que a lei cria novos mecanismos de compensação, florestal e por danos, e que "os marcos temporais ali dispostos dizem respeito a essas duas compensações, em nada atingindo o regime jurídico do CAR, que é dado pelo Código Florestal".
A nota ainda defende que o desmatador possa compensar a área suprimida protegendo uma área de vegetação nativa. "A recuperação da vegetação nativa do cerrado, especialmente áreas de campo e savânicas, é de difícil execução, com baixo índice de sucesso", afirma.
Para Cristina Lopes, gerente de pesquisas da Climate Policy Initiative e coautora do estudo, a lei goiana "é uma aberração". "Flagrantemente ilegal em relação ao Código Florestal e até o momento não foi proposta nenhuma ação no estado sobre a constitucionalidade dessa legislação", afirma.
"Isso também abre um precedente para outros estados fazerem essa mudança ou para que o próprio Congresso veja uma oportunidade de fazer isso no âmbito federal. É um retrocesso grave e traz mais insegurança jurídica para o próprio estado", completa.
Outra pressão que gera mais incertezas sobre a implementação da política vem de representantes do agronegócio, que gostariam de ver o Serviço Florestal Brasileiro no Ministério da Agricultura, onde esteve na gestão Bolsonaro.
A determinação de que o órgão voltaria ao Ministério do Meio Ambiente foi uma das primeiras medidas publicadas pelo governo Lula, ainda no início de janeiro. Segundo o estudo da Climate Policy Initiative, a conversão em lei da MP 1.154/2023, que estabelece a organização dos órgãos do governo federal, traria segurança para o comando do órgão, diante das pressões do setor.
O Serviço Florestal Brasileiro é responsável por apoiar os estados com ferramentas tecnológicas, como a análise dinamizada, feita por computador, a partir de georreferenciamento.
Hoje somente dois estados usam a tecnologia para avaliar os cadastros dos imóveis rurais: São Paulo e Amapá. As dificuldades de customização para uso no restante do país frustra a expectativa dos órgãos estaduais de que a tecnologia alavancaria o processo.
"Estamos buscando aperfeiçoar os novos módulos do nosso sistema, mas também estamos buscando os estados que têm seus sistemas para aprender com eles o que está funcionando melhor", afirmou à Folha o diretor do Serviço Florestal Brasileiro, Garo Batmanian.
O relatório também aponta que o sistema do CAR deveria impedir registros de propriedades rurais sobrepostas a áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas.
"Observa-se que os esforços de cancelamento [dos cadastros] estão sendo anulados pela inscrição de novos cadastros, portanto é fundamental que os governos adotem medidas para impedir estes registros", afirma o relatório.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
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