Crise climática também é crise de subjetividade, diz artista indígena Gustavo Caboco

Destaque da última Bienal põe em evidência herança colonial que exclui povos indígenas no Brasil

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Cristiane Fontes
Oxford

Para Gustavo Caboco Wapichana, o que chamamos de crise climática é, na verdade, uma generalização para uma série de relações que estabelecemos com o mundo. Segundo ele, ela pode ser compreendida como consequência da nossa história colonial, com impactos sobre as identidades e o exercício de nossas subjetividades.

O multiartista, que se apresenta como nascido em Curitiba-Roraima —para descrever não só o local do seu nascimento, a capital do Paraná, mas também o território do seu povo e de seus familiares, a Terra Indígena Canauanim, em Cantá (a 25 km de Boa Vista)— questiona em seu trabalho o contexto histórico que colocou a sua própria família em situações de deslocamento forçado.

Retrato de homem jovem com cabelos na altura dos ombros, com expressão séria
O artista Gustavo Caboco, destaque da última Bienal de São Paulo - Denise Andrade/Divulgação

Por meio de desenhos, pintura, bordados, animação, textos e performances, Caboco reflete, entre outros temas, sobre o rapto da sua mãe por uma missionária em 1968. Nas obras, busca fortalecer as memórias dos povos indígenas, assim como as múltiplas histórias, modos de vida e resistências ainda presentes em todo o país, não só na Amazônia.

"Quando a gente fala da colonialidade, fala como algo de 1500, como se não acontecesse agora, seja nos mecanismos que o Estado institui ou nas nossas educações a partir da exclusão de populações indígenas", diz ele, que adotou Caboco como sobrenome por ser parte de sua memória afetiva e também como provocação.

Caboco, que foi destaque na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021, realizou uma exposição individual, "ouvir àterra", na galeria Millan, na capital paulista, no ano passado. Atualmente tem trabalhos em cartaz na mostra "Atos de Revolta: Outros Imaginários sobre Independência", no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro.

Para ele, a atual visibilidade dos artistas indígenas pode, porém, ser uma "armadilha", uma vez que "parece que tudo está resolvido". "Precisamos atualizar estruturas, para que não só tenham um artista que é o destaque, mas que [artistas indígenas] estejam no corpo educativo, curatorial, nas instituições."

Você diz que estamos em um estado de coma colonial. O que isso significa e como isso se relaciona com a crise climática? A colonização, esse efeito de submissão, é tão forte, tão impregnado, ao ponto de a gente parar de enxergar certas coisas que estão debaixo do nosso nariz. E está em tudo, seja no patrimônio público, seja em nome de ruas, quando se rememora alguns personagens, como bandeirantes, seja nos apagamentos e no silenciamento das vozes indígenas.

Como o questionamento que você vem fazendo da memória colonial e a proposta da reconstrução da identidade indígena são respostas à crise climática e a outras crises da humanidade? Acho que existe uma crise da subjetividade. Dentro desse coma colonial há também uma colonização dos nossos imaginários.

Quando a gente fala de crise climática, está generalizando uma série de relações com o mundo. Em conversas com amigos indígenas, a gente fala da natureza como parentes, irmãos, tios… Um rio como um avô, como expressado por pensadores como o Ailton Krenak.

Você desloca essa ideia de olhar algo como matéria-prima. Quando a gente fala da questão identitária, isso afeta diretamente nossas subjetividades e, por consequência, os modos como a gente vê o que está no nosso entorno.

Pessoas seguram um cartaz ou pano vermelho que diz  "Não Apagarão Nossa Memória", escrito com letras brancas; elas o seguram do segundo andar da biblioteca, que é muito tradicional e antiga, com imensas estantes repletas de livros
Obra "Não Apagarão Nossa Memória" (2021), no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, realizada pela Família Wapichana com Gustavo Caboco; a obra foi parte da programação da 34ª Bienal de São Paulo - Reprodução

Você acha que a demanda por demarcação de territórios indígenas e o processo de retomada de territórios ancestrais são bem compreendidos pela população brasileira? Acho que existe um abismo enorme nessas compreensões, até da assimilação de palavras. Essa palavra "retomada" faz parte de um contexto. Só quem viveu na pele entende o que significa estar num ambiente de conflito.

Nós temos em nossa família essa memória da luta pelo território. Sem essa luta, não teríamos para onde retornar. Que contexto histórico coloca a nossa família em situações de deslocamento forçado, raptos e sequestros de crianças e todas as violências a que essas populações estão submetidas, tendo de encontrar formas para se manterem vivas?

Quando a gente fala da colonialidade, fala como algo de 1500, como se não acontecesse agora, seja nos mecanismos que o Estado institui ou nas nossas educações a partir da exclusão de populações indígenas, e não só indígenas.

A gente vê isso numa série de acontecimentos, a ideia da exclusão de quem não pertence à chamada "civilidade". Essa é uma discussão muito profunda e me questiono porque lidamos com as dificuldades a partir dos afastamentos.

Ilustração branca em um fundo vermelho
'Kanau'Kyba' (caminhos das pedras), instalação e animação de Gustavo Caboco (2020), comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para a 34ª edição do evento - Divulgação

Quais são as possibilidades de repensarmos o Brasil também a partir da memória viva dos povos originários? No Museu Paranaense [em Curitiba], fizemos encontros com populações indígenas de lá —guarani, kaingang e xetá—, isso tudo junto com o Denilson Baniwa [artista indígena do povo baniwa]. Foi um encontro das fotografias que esse museu tem com as populações que foram fotografadas, mas nunca ou pouco tinham ido ao museu.

O que a gente vê [nessa ação] é a relação colonial na prática. Algumas famílias encontraram fotos dos seus avós, tios, só que no museu está lá escrito "índia guarani", algo genérico. Esse exemplo mostra a nossa despessoalização no modo de produzir uma série de coisas: conteúdo, arquivo, a forma como as histórias são narradas.

Duas fotos de indígenas bordadas com linhas vermelhas dispostas em um tecido azul
Obra 'Encontros di-fusos' (2022), de Gustavo Caboco - Divulgação

Como é trabalhar na rede Paraná-Roraima? Paraná, onde você nasceu, e Roraima, onde está o seu povo. Como estar entre esses mundos na luta por autonomia? Nasci em Curitiba-Roraima, é assim que eu me apresento. Nasci em dois territórios. Um território no Sul, onde há populações indígenas também, e essa já é uma primeira informação importante, porque as pessoas continuam a falar que só existe em indígenas na Amazônia e como se a Amazônia também não fosse plural.

Nós fizemos um retorno à terra wapichana em 2001. Depois de 33 anos, minha mãe conseguiu se reconectar com a mãe dela. Essa separação aconteceu nos anos 60. Isso me incomoda ainda hoje, porque ainda é uma prática comum.

Quando a gente chega em Roraima, vejo como a nossa família mantém viva a nossa cultura, a relação com a língua, essa educação indígena. Quando eu falo de retorno à terra, não é só ir até Roraima, é também identificar todas essas relações históricas.

Em uma mata um homem está sentado em uma cadeira em frente a uma mesa na qual parece bater com um objeto usando a mão direita
Performance 'Exigências da Mata' (2020), de Gustavo Caboco - Divulgação

Poderia nos contar um pouco mais sobre a experiência da sua mãe e como você vê isso ainda acontecendo? Em Roraima, muitas famílias incorporam pessoas indígenas em suas famílias, uma colonização através do afeto. É como se o afeto, essa comida que eu vou te dar, a casa que eu vou te dar, a escola que eu vou te dar, como se isso fosse uma recompensa por estar a serviço, estar à disposição.

A violência, ela está na bebida, no vício, nas questões de prostituição, na exclusão ou falta de assistência ou de saúde, mas também está no amor.

Você foi destaque da última Bienal, tem trabalhos em diversas exposições em cartaz e esteve recentemente em um giro por universidades e instituições norte-americanas. Como avalia a presença indígena nas artes no momento? A gente ver artistas na mídia, na última Bienal ou na próxima não significa que isso vá resolver lacunas seculares. Precisamos atualizar estruturas, para que não só tenham um artista que é o destaque, mas que [artistas indígenas] estejam no corpo educativo, curatorial, nas instituições. Os lugares de destaque podem ser grandes armadilhas, pois parece que tudo está resolvido.

Você afirma que "nossas avós são nossas bibliotecas". O que considera mais urgente na preservação das memórias dessa população já mais velha em territórios indígenas? Quando fui para o território pela primeira vez, recebi um recado que nunca esqueci: "tudo bem, vocês voltaram, mas o que retorna, o que retorna a partir daí?".

Continuo a perguntar isso. Tanto pesquisadores que passaram por lá extraíram alguma coisa: fotografia, pensamento, patente. O que retorna para as nossas comunidades? Para esses museus que levaram coisas do nosso povo, o que retorna para nós?

O que acha deste trecho de fala do presidente Lula em visita recente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, referindo-se à colonização: "Toda a desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação, da mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita aqui"? Na ideia da mistura está inserida a ideia de apagamento. Quando você mistura vermelho com preto, tem um tipo de marrom. Nas políticas de embranquecimento instituídas pelo Marquês de Pombal era regra você não poder falar sua língua ou ter de se casar com um branco.

A mistura acaba homogeneizando, mas somos diversos. No primeiro Censo, existia essa categoria "caboco", dos indígenas que perderam a cultura, mas isso se tornou uma forma de preconceito. O caboco também foi uma forma de defesa.

Chegava um fazendeiro e falava: "Você é wapichana, macuxi, o que você é?". A pessoa respondia: "Não, eu sou caboco". Respondia isso para não morrer, mas à noite você estava falando sua língua.

Como diminuir esse abismo dos não indígenas ou o desconhecimento dos não indígenas em relação aos povos indígenas no Brasil? A primeira pergunta é sempre reconhecer, a partir do seu território, quem são as populações indígenas dali e quais são as relações históricas que mantêm. Costumo convidar as pessoas a pensar a partir do lugar onde elas estão, para elaborar uma consciência geopolítica mais crítica.


RAIO-X

Gustavo Caboco, 33

Originário do povo wapichana, o multiartista vive e trabalha entre Curitiba e a Terra Indígena Canauanim (RR). É autor dos livros "Baaraz Kawau", "Baaraz Ka’aupan" e "Recado do Bendegó: Conversas com a Pedra". Recentemente, junto com a pesquisadora Jamille Pinheiro Dias e a curadora Naine Terena, organizou atividades em universidades americanas, como Harvard e Berkeley, para ampliar a visibilidade de manifestações estéticas indígenas.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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