Empresa de Nova York tem ligação com contrabando de ouro ilegal da Amazônia

Apreensão de R$ 10 milhões em barras de ouro em aeroporto de Manaus aponta como falta de fiscalização atrai estrangeiros

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Fernanda Wenzel Hyury Potter Rich Schapiro Andrew Lehren
Repórter Brasil e NBC News

Aeroporto de Manaus, janeiro de 2020. Já passava das 21h de uma sexta-feira quando dois americanos e um brasileiro foram abordados por agentes da PF (Polícia Federal). Com fotos dos estrangeiros em mãos, os policiais estavam interessados na mala rosa com a qual eles pretendiam embarcar para Nova York, carregada com 35 kg de ouro amazônico que hoje valem R$ 10 milhões.

A carga, que representa um terço do ouro ilegal apreendido pela PF naquele ano, estava em posse dos nova-iorquinos Frank Giannuzzi e Steven Bellino e do goiano Brubeyk Nascimento. No centro de uma disputa judicial, as barras podem ser a ponta de um esquema internacional de contrabando de ouro ilegal da Amazônia, segundo apuração conjunta da Repórter Brasil e da rede de TV americana NBC News.

Durante a abordagem, os três informaram que a carga seria de reaproveitamento de joias derretidas, mas a PF já tinha informações de inteligência sobre a possível origem irregular. "Por isso, nós os abordamos antes do embarque", explicou o perito criminal Ricardo Lívio Marques.

A primeira análise da composição do material, feita ainda no aeroporto com uma pistola de raio-X, apontou a origem ilegal, como foi depois confirmado por outras duas perícias mais precisas. A análise detectou impurezas "frequentemente encontradas em ouro de garimpo e nunca em material reciclado".

Segundo os laudos, o ouro seria da Província Aurífera do Tapajós, no Pará, onde estão três das terras indígenas mais afetadas pela mineração ilegal: Munduruku, Sawré-Muybu e Sai-Cinza, segundo o Mapbiomas.

Foto aérea de clareira na floresta com área de garimpo
Área de garimpo ilegal na região do rio Crepori, afluente do Tapajós, em Jacareacanga (PA), nas proximidades da Terra Indígena Munduruku - Pedro Ladeira - 15.fev.2022/Folhapress

Bellino, 65, e Giannuzzi, 43, eram amigos há mais de uma década quando foram apresentados a Nascimento em 2019 pela esposa de Giannuzzi, que é brasileira. Foi daí que surgiu a ideia de importar ouro da América do Sul para EUA e Turquia. Os estrangeiros então criaram a empresa Doromet, que promete "serviço completo" no comércio de metais preciosos e tem sede em Manhattan.

A 6.800 km dali, no centro de Anápolis (GO), o negócio de Nascimento, 36, formado em engenharia, deslanchou após o encontro. A Bamc Laboratório de Análises de Solos e Minérios Ltda, criada em 2018 como um comércio atacadista de minérios, aumentou em 65 vezes a compra anual de ouro entre 2019 e 2022, passando de 35 kg para 2.279 kg. A empresa, porém, não está autorizada a comprar ouro de garimpo no Brasil, segundo a ANM (Agência Nacional de Mineração).

Em 2021, Bellino entrou com uma ação na Justiça de Nova York contra o antigo sócio e o brasileiro, alegando ter investido US$ 750 mil na Doromet, mas não ter recebido participação pelo "negócio lucrativo" que a firma havia se tornado.

Esse processo confirma que, após a apreensão em Manaus, "todas as remessas de ouro subsequentes foram recebidas do Brasil e processadas nos Estados Unidos, além de em Istambul, Turquia".

A ação judicial também revela o trajeto de parte do ouro retirado ilegalmente da Amazônia, informação raramente disponível em um setor pouco transparente e cujas transações ainda são em papel —foi apenas na última quinta-feira (30), que o governo publicou uma instrução normativa instituindo a nota fiscal eletrônica no comércio de ouro, a vigorar a partir de julho.

Em Nova York, o metal brasileiro seria refinado a poucas quadras da Doromet, na Gold Tower Refinery, que teria assinado um termo de compra com Ginanuzzi e Bellino. Porém, a refinaria disse que o documento apresentado à Justiça é "forjado" e que a empresa "jamais assinou qualquer acordo" envolvendo ouro brasileiro.

Procurado pela NBC, o advogado John Maggio, que defende Bellino nos EUA, afirmou que atua apenas na ação contra Giannuzzi e que não comentaria a disputa judicial no Brasil.

A defesa de Giannuzzi nos EUA não quis se manifestar.

O advogado de Nascimento, Robspierre Lôbo de Carvalho, afirmou que a origem do ouro é legal e que as perícias da PF são "totalmente suspeitas e serão impugnadas".

200 mil alianças de casamento por mês

No mesmo mês em que conheceu os americanos, Nascimento assinou um contrato com Werner Rydl, bilionário austríaco naturalizado brasileiro que se comprometeu a fornecer mensalmente ao goiano até 700 kg de ouro de reaproveitamento de joias. A quantia equivale a mais de 200 mil alianças de casamento por mês —número superior a todos os brasileiros divorciados em 2022.

Rydl já foi flagrado tentando embarcar com ouro de origem duvidosa em 2015, no aeroporto de Cuiabá, e em 2018 em Guarulhos. Além disso, é investigado pela PF por exportação de 120 toneladas do metal em situação suspeita.

À Repórter Brasil, Rydl confirmou que vendeu barras de ouro a Nascimento e prestou depoimento sobre o caso à PF em dezembro. O empresário disse que comprou todo o seu patrimônio em joias no Brasil entre 1991 e 2010.

Sobre a pureza das barras apreendidas não serem compatíveis com joias derretidas, Rydl afirmou: "Bobagem, joias existem em qualquer pureza".

A disputa pelo ouro

A indicação da origem ilegal dos 35 kg de ouro na primeira perícia da PF não demoveu os americanos de brigar na Justiça brasileira pela carga. Tampouco convenceu alguns magistrados da necessidade de mantê-la no Brasil, já que dois juízes votaram pela devolução do minério.

O MPF defendeu no TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) que o ouro ficasse sob a guarda da União, pois seria "extremamente difícil ou até mesmo inviável" recuperá-lo se fosse levado ao exterior.

Mesmo assim, o relator do processo, Ney Bello, aceitou a tese da Doromet de que o primeiro laudo da PF era "precário" e de que a propriedade do minério e sua origem legal estavam "documentalmente provadas". Bello foi cotado por Bolsonaro para assumir uma vaga no STJ em 2022.

Seu voto foi acompanhado pela presidente da turma, Maria do Carmo Cardoso, amiga do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) que teve as redes sociais bloqueadas após postagem a favor de atos golpistas.

Procurado, o TRF-1 afirmou que a decisão referiu-se apenas à guarda do ouro, e que "questões acerca de posse, propriedade e origem não dizem respeito ao juízo criminal". Bello e Cardoso foram procurados por meio do tribunal e não se manifestaram.

Com os votos de Cardoso e Bello, o caminho estaria livre para o metal seguir para os EUA, não fosse um auto de apreensão do ouro expedido em 2021 pela ANM.

O advogado Guilherme Peixoto de Almeida, que defende a Doromet no Brasil, afirmou que a apreensão da ANM é ilegal pois não foi precedida pelo devido processo legal.

Apesar de o minério ainda estar em disputa, a ANM disse que tem amparo legal para levar o ouro a leilão antes do fim dos processos, e que deve fazê-lo este ano. Enquanto isso, as barras seguem guardadas em um cofre da Caixa Econômica Federal em Manaus.

Naquela sexta de 2020, Giannuzzi e Bellino prestaram depoimento e, como não foram indiciados, puderam retornar aos EUA. Já Nascimento foi preso e pagou R$ 104 mil para sair da cadeia três dias depois.

A movimentação de sua empresa indica que ele pode ter descumprido a promessa de não voltar a se envolver com o comércio de ouro, assumida perante a Justiça para que houvesse o relaxamento da prisão preventiva.

Fernanda Wenzel e Hyury Potter são fellows da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

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