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'Brincando com fogo': a contagem regressiva para extração de minerais do fundo do mar

Disputa sobre futuro das profundezas do Pacífico coloca órgão regulador da ONU no centro do debate

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Kenza Bryan Harry Tempsey
Financial Times

As partes mais profundas do Oceano Pacífico descansam intactas há milênios. Mas agora as criaturas que vivem milhares de metros sob a superfície podem topar com novos visitantes: empresas extraindo minerais que são imprescindíveis para a transição à energia verde.

A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (International Seabed Authority, ou ISA), organização apoiada pela ONU que regula o fundo do mar, prepara-se para analisar em julho o primeiro pedido de licença de mineração comercial no mar profundo, apesar de muitos de seus Estados membros avisarem que ainda é cedo para a mineração passar da terra para a água.

Alvin foi o primeiro veículo operado por controle remoto a visitar respiradouros hidrotérmicos quando mergulhou até o leito oceânico profundo em 1977 - Ralph White/Getty Images

Dois anos atrás, Nauru inaugurou a contagem regressiva para o potencial início da mineração comercial em águas profundas, prática debatida fortemente desde a década de 1960. A pequena ilha no Pacífico ativou uma cláusula legal que obriga a ISA a analisar pedidos de alvarás de mineração comercial segundo um esquema básico criado para a prospecção, isso se a entidade não conseguir acordar um conjunto completo de salvaguardas para o setor antes de meados deste ano.

Em vista desse prazo, empresas e países estão correndo para influenciar o que vai acontecer a seguir. Enquanto Nauru está pedindo explicitamente que os pedidos de alvarás sejam avaliados a partir de julho, países como a Noruega vêm adotando uma posição pró-extração mais branda, opondo propostas para facilitar o veto a pedidos. Vários países europeus estão pedindo cautela ao mesmo tempo em que realizam seus próprios trabalhos de prospecção, e a China também está enviando embarcações para vasculhar o leito do mar em busca de minerais como cobalto, níquel, manganês e cobre.

Ambientalistas têm alertado para os riscos. Os países estão tentando avaliar o esforço para abandonar os combustíveis fósseis e contrabalanceá-los com a necessidade de proteger os ecossistemas marinhos, destacando que os padrões ecológicos e mecanismos de responsabilidade ainda estarão no limbo quando o prazo se esgotar. Os tesouros ecológicos no fundo do mar incluem criaturas como o raro peixe-fantasma, o polvo-dumbo e a anêmona-do-mar gigante, além de vermes microscópicos que, segundo cientistas, podem encerrar a chave da compreensão da evolução humana.

"Precisamos dessas commodities", observou Michael Widmer, estrategista de metais no Bank of America. Mas, indagou: "Será que se justifica destruir o leito do mar para facilitar a transição energética?".

No momento as empresas podem prospectar águas internacionais em busca de minerais, mas não podem extrair os minerais. A iniciativa de Nauru, que está patrocinando a mineradora The Metals Company (TMC), de Vancouver, pode acelerar a chegada da extração em escala comercial.

Os proponentes da mineração em águas profundas dizem que a transição é necessária porque a mineração terrestre não consegue satisfazer a demanda por metais que são necessários para baterias, fiação e outros hardwares essenciais para o abandono dos combustíveis fósseis. O boom dos carros elétricos e baterias de rede resultante do esforço para cumprir os termos do Pacto Climático de Paris significa que a demanda por minerais deve se multiplicar por quatro até 2040, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE). Aumentar a mineração terrestre a esse ponto significaria depender da China e acarretaria um custo ambiental enorme.

Grupos offshore estão testando três maneiras de extrair minerais. A opção mais promissora envolve sugar nódulos polimetálicos individuais do leito oceânico, que são então transportados por mangueiras flexíveis de quatro quilômetros de extensão até navios ancorados no mar. Esses nódulos contêm cobre, cobalto, níquel e manganês —metais que já são controversos porque sua extração em terra está ligada ao desmatamento, trabalho forçado e o deslocamento de comunidades.

Ao centro da disputa em torno do futuro da mineração em alto-mar está a ISA, organismo criado em 1982 para garantir que a extração de minerais de águas internacionais beneficiasse a humanidade. Suas decisões são tomadas por um pequeno conselho de Estados-membros que se revezam, decidindo em nome de 167 países mais a UE. Os Estados Unidos nunca entraram para a ISA. A partir de julho, depois de analisar os pedidos por um ano, esse conselho pode aprovar os alvarás de exploração, bastando para isso o apoio de um terço de seus membros.

Alguns diplomatas acusam a ISA de uma postura excessivamente favorável à mineração. Numa conferência no ano passado o secretário-geral da organização, o britânico Michael Lodge, atribuiu a oposição à mineração no fundo do mar ao "crescente extremismo e dogmatismo ambiental, que em algumas instâncias beira o fanatismo".

Lodge havia dito anteriormente que uma moratória da mineração seria "contrária à ciência, ao conhecimento, ao desenvolvimento e à lei internacional" e aparecido em um vídeo promocional da empresa de mineração TMC. Esta disse que Lodge visitou sua embarcação de prospecção em 2018 e "concordou em compartilhar por vídeo suas posições sobre o desenvolvimento desta indústria".

Um integrante do conselho que rege a ISA disse que Lodge provocou mal-estar entre diplomatas em fevereiro quando compartilhou um comunicado visto como uma tentativa de afirmar a supremacia de sua organização sobre um tratado referencial da ONU para proteger a biodiversidade marinha. O novo acordo criará um organismo que poderá intervir no caso de um desastre marinho criado pelo homem. O tratado "não deve substituir ou enfraquecer" a ISA, escreveu Lodge em um comunicado de fevereiro ao qual o Financial Times teve acesso.

Um membro da delegação alemã à ISA escreveu a Lodge em março para transmitir a preocupação de que Lodge estaria resistindo aos esforços de alguns delegados para desacelerar o processo de aprovação de acordos de mineração comercial. Em carta obtida primeiramente pelo New York Times e à qual o FT teve acesso, Lodge rejeitou essas preocupações, dizendo que são "ousadas e infundadas".

A ISA disse que adotará uma "abordagem de precaução" aos pedidos de alvarás para extração de minerais do leito do mar e que saúda o novo tratado da ONU. Ela acrescentou que a caracterização dos comentários de Lodge sobre mineração em águas profundas foi "enganosa" e que ele não concordou em aparecer no vídeo da TMC. Disse ainda que ela saúda a conclusão de um novo tratado da ONU, cujos objetivos estão "ao centro da missão da ISA".

Alguns países europeus parecem estar querendo ganhar mais tempo. França, Alemanha e Espanha patrocinam licenças de prospecção em alto-mar. Mas, em reuniões na Jamaica no mês passado, elas defenderam uma pausa preventiva na mineração no leito do mar. Depois de recomendações de cientistas de que o papel do fundo do mar na armazenagem de carbono e na sustentação da fauna e flora natural ainda é pouco conhecido, pelo menos uma dúzia de países pediram uma suspensão temporária da atividade.

O governo britânico, que está financiando um projeto de pesquisa científica de US$ 6 milhões (cerca de R$ 30 milhões) em suas próprias zonas de exploração no Pacífico, disse em março que não defenderá a mineração comercial nessas áreas enquanto a ISA não conseguir acordar regras globais.

A China patrocina mais licenças de prospecção que qualquer outro país. Mas, segundo analistas, seu domínio das cadeias de fornecimento de minerais críticos pode ser ameaçado se a mineração em águas profundas começar antes de Pequim estar preparada. Em reuniões da ISA no mês passado, segundo duas pessoas presentes às reuniões, diplomatas chineses não deram seu aval imediato, mas argumentam que as preocupações ambientais não devem pesar mais que os benefícios econômicos da extração.

Com o apoio da empresa de mineração Glencore, que está no índice FTSE 100, e da empresa suíça de infraestrutura submarina Allseas, além de Nauru, a TMC está levando seu pedido adiante. Seu diretor executivo Gerard Barron confirmou que ela pretende apresentar este ano um pedido de alvará para a extração comercial de minerais no fundo do mar.

"Temos o direito legal de fazê-lo", disse Barron. "A ISA está finalizando as normas de exploração. Não está parada, decidindo se a exploração vai ou não acontecer."

A TMC extraiu 4.400 toneladas de nódulos polimetálicos num teste realizado no ano passado e, a partir do momento em que tiver licença de exploração comercial, pretende extrair 1,3 milhão de toneladas ao ano. A firma, que é deficitária, prometeu que até 2024 começará a ganhar dinheiro com mineração comercial.

Sua posição destoa da de outras empresas de mineração em alto-mar, que disseram precisar de certeza regulatória agora para poderem iniciar operações comerciais perto do final da década.

"Ninguém, a não ser a TMC, quer começar a extrair minerais do fundo do mar, pelo menos não nos próximos anos", disse Duncan Currie, advogado da Coalizão de Conservação das Profundezas Marinhas. "Isso vem criando tensão enorme, ansiedade diplomática, frustração e atividade, tudo por conta de uma empresa."

Segundo um artigo científico co-escrito por Adrian Glover, cientista do Museu de História Natural de Londres que retornou no mês passado de uma missão exploratória no fundo do mar financiada pelo governo britânico, a Zona Clarion-Clipperton, no Oceano Pacífico, onde a maior parte da prospecção tem sido realizada, é "um dos habitats sedimentados marinhos que tem a maior biodiversidade do nosso planeta".

Ambientalistas dizem que a nuvem de águas residuais emitida por maquinário de mineração em águas profundas pode perturbar a chamada "neve marinha", formada por partículas de matéria biológica rica em carbono e nutrientes, que geralmente se deposita no fundo do mar. A poluição sonora pode perturbar mamíferos marinhos.

Os ecossistemas do fundo do mar "levam milênios para se criar e podem levar segundos para ser destruídos", disse o oceanógrafo Tony Worby, da organização australiana sem fins lucrativos Minderoo Foundation. "Estamos brincando com fogo se pensamos que podemos descer até as profundezas do mar e garimpá-las destrutivamente sem repercussões maciças."

"É uma troca", disse Kris Van Nijen, diretor gerente da empresa belga de mineração em águas profundas Global Sea Mineral Resources. "Se extraímos minerais na Indonésia, Papua-Nova Guiné e Filipinas e destruímos suas florestas tropicais, até que ponto nódulos polimetálicos podem ser um recurso natural melhor que os minerais extraídos em terra?"

Há outras perguntas ainda sem resposta em relação à mineração em alto-mar. Por exemplo, se uma mineradora soltasse água residual muito perto da superfície ou se danificasse seriamente o leito do mar, não está claro quem seria responsável pela indenização.

"Podemos acabar numa situação em que a Nori [uma subsidiária da TMC] ou qualquer mineradora poderia falir ou ficar inadimplente, sem acesso a dinheiro [para pagar multas]", disse Pradeep Singh, especialista em direito marítimo no Instituto alemão de Pesquisas para a Sustentabilidade.

A mineração em alto-mar também teria que demonstrar que pode competir em custos com a mineração terrestre. E teria que ganhar a adesão de fabricantes e consumidores de carros.

Outra questão ainda é a partilha de lucros entre Estados membros. Segundo a ISA, ela será calculada com base na população de cada Estado, seus investimento em mineração em alto-mar e receita perdida de mineração terrestre.

Para Glover, qualquer decisão de seguir adiante com a mineração em alto-mar não será científica. "É uma decisão política. Depende unicamente de quanto risco vamos nos dispor a assumir."

Tradução de Clara Allain

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