Saiba como o desmatamento do cerrado gera crise hídrica no Brasil

Expansão da agropecuária interfere na dinâmica de abastecimento, dizem especialistas

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Com 27 milhões de hectares perdidos nas últimas quatro décadas —tamanho que equivale ao estado do Tocantins—, o cerrado agoniza. Em 2023, o bioma vem sofrendo uma média de 150 alertas diários de desmatamento, conforme dados da plataforma SAD Cerrado, desenvolvida pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

A conversão da floresta nativa em lavouras de soja, milho, cana e algodão traria menos preocupações aos cientistas se sua vegetação não estivesse diretamente ligada à dinâmica hídrica nacional.

O agronegócio passa por um processo de expansão na região conhecida como Matopiba (nome formado pelas siglas dos estados do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia).

Centro de Pesquisa e Tecnologia do Oeste Baiano realiza estudos com uso de pivô de irrigação em terras destinadas à soja no Matopiba. Uso da água na região preocupa especialistas em recursos hídricos - Raul Spinassé - 11.dez.2019/Folhapress

A bióloga Mercedes Bustamante, que é presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e uma das maiores especialistas no assunto, diz que o sinal vermelho está aceso.

"A região hidrográfica do São Francisco, já bastante vulnerável socialmente, e o Pantanal, com sua enorme relevância ecológica, estão sendo afetados pela redução da quantidade de água que entra no cerrado. Além disso, a qualidade da água também está sendo prejudicada por contaminações das plantações."

Hotspot mundial de biodiversidade, o bioma possui 11 tipos de formações florestais que variam de matas ciliares a brejos. A mesma diversidade estende-se ao relevo. Das suas serras, chapadas, tabuleiros, planaltos e patamares brotam milhares de nascentes que abastecem oito regiões hidrográficas do país.

Na estação seca, as árvores retiram água do lençol freático, mas, na estação chuvosa, são suas raízes profundas que a drenam para os aquíferos, recarregando-os.

Espécies endêmicas, como o pequizeiro e a mangabeira, possuem raízes ramificadas que atingem mais de dez metros de comprimento. É por conta dessa importante função que o bioma ganhou o apelido de "floresta invertida".

Além do desmatamento, a superexploração das águas pela agropecuária, que usa pivôs centrais e bombas de sucção, também está rebaixando os lençóis freáticos, conforme os especialistas.

"No norte de Minas, o volume que está sendo retirado das reservas geológicas é maior do que aquele que entra, então o nível do lençol baixa. Faltam políticas públicas para o uso racional deste recurso limitado", diz o engenheiro Walter Viana.

Há 15 anos, ele monitora o desaparecimento de veredas na região do Parque Nacional Grande Sertão com medidores de vazão, poços tubulares e uma estação meteorológica.

"O problema é que esta caixa d’água [o aquífero] tem fundo. Não irá demorar para acontecer o pior", afirma Viana, revelando que em outra bacia de Minas Gerais, a do Rio Verde Grande, a taxa de captação de água subterrânea está 218% superior à taxa de recarga. O maior projeto público de agricultura irrigada da América Latina, Jaíba, foi instalado na região durante o período militar e ainda opera.

A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, criada em 2016, reúne mais de 50 organizações nacionais e internacionais. A conservação das águas é uma das suas bandeiras centrais, assim como o pleito pelo reconhecimento das comunidades tradicionais espalhadas por toda a região.

Maiana Maia, secretária-executiva da rede, também alerta para o uso desordenado dos aquíferos.

"Estamos sofrendo processos de devastação irreversíveis. Os poços caipiras estão secando e os relatórios dos próprios órgãos hídricos apontam que as reservas subterrâneas estão em risco. Mais de 90% dos pivôs do país estão no cerrado, subtraindo água para irrigação em larga escala", pontua.

Maia comenta que a população associa crises de abastecimento à falta de chuvas, mas é preciso que sociedade civil atente para as consequências desse uso excessivo.

Ela acredita que a superexploração dos reservatórios no subsolo poderá causar danos em outras regiões do país, já que as vazões dos rios tendem a diminuir devido à conexão entre águas subterrâneas e superficiais (nascentes, riachos e rios).

No oeste da Bahia, região que vem batendo recordes seguidos de desmatamento conforme o Prodes Cerrado, o ambientalista Marcos Beltrão documenta as ameaças ao Urucuia, um dos aquíferos mais importantes do bioma.

"A devastação das matas para plantio de soja está acontecendo nas áreas planas dos chapadões, que são justamente as áreas de recarga. Existem riachos que já secaram e vejo as nascentes migrando de local porque o nível do lençol caiu."

Morador de Correntina (BA), Beltrão alerta para a perda da biodiversidade no município, um dos cinco na liderança do PIB agrícola baiano. Com 41 anos, ele notou que animais como jacarés e sucuris não existem mais onde costumava nadar quando criança.

Já em Balsas, epicentro do agronegócio no Maranhão, o aposentado Antonio de Moraes atua como agente pastoral apoiando comunidades rurais. Ele confirma que os problemas hídricos também se intensificam por lá.

"Em Uruçuí, onde o rio Parnaíba encontra o Balsas, na divisa com o Piauí, fizeram até um campo de futebol no leito seco do rio. Como vamos evitar o colapso hídrico com tanta derrubada acontecendo em APPs [áreas de preservação permanente]?", questiona.

Para a bióloga Mercedes Bustamante, reduzir o desmatamento é uma tarefa urgente. As altas taxas de devastação começaram no início da década de 1980, quando programas públicos como o Prodecer (Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados), um projeto-piloto de desenvolvimento agrícola lançado em parceria com o governo do Japão, começaram a ser implantados.

Até então, as terras ácidas do bioma eram consideradas impróprias para agricultura.

"A escala do impacto já é sentida no cerrado inteiro. E o que mais me preocupa é o tempo. Quanto mais a gente demora para derrubar estas taxas, menos efetivas serão as políticas de restauração que vierem", afirma a presidente da Capes.

A bióloga calcula que seriam necessários cerca de 30 anos para o cerrado se recuperar. Sem frear o estrago ambiental, porém, a savana mais biodiversa do mundo, que levou 40 milhões de anos para atingir tamanha riqueza biológica, pode sucumbir neste século.

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