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Salles anistia desmatadores da mata atlântica em meio à pandemia de Covid-19

Ministro reconheceu áreas desmatadas até 2008; especialistas dizem que medida fere imagem do agronegócio

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São Paulo

Em meio à pandemia do novo coronavírus no Brasil, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) deu anistia a proprietários rurais que destruíram áreas frágeis e importantes da mata atlântica, o bioma mais devastado do Brasil

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, assinou, em 6 de abril, um despacho implementando parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) que reconhece como áreas consolidadas as APPs (Áreas de Preservação Permanentes) desmatadas e ocupadas até julho de 2008. Com isso, fica permitido o retorno da produção nesses locais.

As APPs são áreas que têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, segundo o Código Florestal. Uma das importantes funções desses locais é a segurança hídrica, principalmente ao se considerar que a região da mata atlântica concentra expressiva parcela da população brasileira.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles - André Coelho/Folhapress

O parecer foi feito após pressão da CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil) e do agronegócio do sul do Brasil. Também consta no documento que “em razão da mudança de gestão do MMA [Ministério do Meio Ambiente], a Presidência do Ibama solicitou a reavaliação do tema”.

“Em fevereiro deste ano [2019], o presidente da Faesc [Federação da Agricultura em Pecuária do Estado de Santa Catarina] José Zeferino Pedrozo chefiou delegação a Brasília para expor ao Ministério do Meio Ambiente abusos praticados pelo Ibama contra produtores da serra catarinense”, diz uma nota no site da CNA que fala sobre “alívio aos agricultores” após o parecer da AGU.

Segundo Alexandre Gaio, promotor de Justiça do centro de apoio da proteção do meio ambiente, habitação e urbanismo do MP (Ministério Público) do Paraná, a ação de Salles tornou vinculante o parecer para os órgãos da administração federal.

“Isso tem como consequência a apreciação de milhares de pedidos de cancelamento de multas, lavrados com base em desmatamento não autorizado de mata atlântica”, diz Gaio.

Além da anistia a desmatadores, a ação de Salles traz mais insegurança jurídica para o campo, um ponto de reclamação constante do agronegócio, por conta da judicialização de temas ambientais.

Mario Mantovani, diretor da ONG SOS Mata Atlântica, diz que a maior parte dos proprietários rurais na mata atlântica segue a legislação e, por isso, não faria sentido trazer elementos contraditórios para a equação.

“De 2008 para cá nós praticamente não temos grande conflitos na mata atlântica. É o bioma que está resolvido. E o ministro traz um problema não só para a floresta, mas para o setor agrícola, que vai ter mais uma pressão dizendo que é o setor que quer destruir a floresta”, diz Mantovani.

Gaio afirma que a movimentação internacional é clara sobre o tema. “Não há mais interesse em adquirir produtos de quem produz com ilicitudes ambientais.”

O despacho e o parecer questionam a aplicação da lei da mata atlântica nas APPs, segundo a qual não existe a possibilidade de consolidação de ocupação nessas áreas --ou seja, locais de APPs desmatados teriam que ser regenerados. Já o Código Florestal admite a continuidade de atividades agropecuárias nas áreas ocupadas até 22 de julho de 2008.

Com a posição do ministro, os proprietários rurais não precisam recuperar (a partir do Programa de Regularização Ambiental) a vegetação de margens de rios, por exemplo. “Essa medida ataca uma das áreas mais frágeis da mata atlântica. Como ficarão nossos cursos hídricos e nossos mananciais nas próximas décadas com esse tipo de conduta?”, diz o promotor.

Além do problema ambiental, a posição do despacho de Salles contraria as regras jurídicas.

Gaio afirma que uma lei geral, como o Código Florestal, não prevalece sobre uma lei especial, como é o caso da lei da mata atlântica (Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006).

Por isso, o promotor afirma que, no dia a dia, as anistias e cancelamentos de multas resultantes da decisão de Salles serão questionadas judicialmente. “A insegurança jurídica é total. Isso não pacifica nada.”

Em uma live, no fim do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) elogiou o parecer que traz anistia ao agronegócio. "Um parecer que é muito importante para o pessoal que está aí na região da mata atlântica. Permite aos agricultores que voltem a produzir nas áreas consolidadas até 2008", disse. "E o mais importante, quem foi multado naquela época poderá voltar a produzir."

Bolsonaro costuma atacar as multas dadas por infrações ambientais. Ele próprio já foi multado por pesca ilegal, em 2012. Em junho deste ano, uma decisão do Ibama afirmou que a multa prescreveu em 31 de janeiro de 2018.

Mantovani afirma que o governo atual tem sido marcado pelo desmatamento em diversos biomas. A Amazônia registrou o recorde de destruição da década em 2019, com um crescimento de 29,5% e 9.762 km² desmatados (a medida de desmatamento é feita entre agosto de um ano e julho do ano seguinte, portanto, a última medida diz respeito ao período eleitoral e os primeiros meses do governo Bolsonaro).

“O ministro agora parte para cima de uma área que estava toda regularizada, vem promover desmatamento e anistia em uma área que está pacificada”, diz o diretor da SOS Mata Atlântica. “E agredir os rios é talvez a maior das insanidades que alguém pode pensar.”

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não se posicionou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.

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