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China é o 'ecossistema' natural para bebês editados geneticamente

Ação, que pode ser considerada questionável, se aproveita de frouxas barreiras regulatórias chinesas

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Reinaldo José Lopes
São Carlos

Não surpreende que os primeiros nascimentos de bebês com DNA editado tenham acontecido na China. Com barreiras regulatórias bem mais frouxas do que a maioria dos países desenvolvidos e uma comunidade científica bem financiada e em ascensão, a potência asiática era o “ecossistema” natural para esse tipo de ousadia (ou temeridade).

A China já tinha saído na frente em 2015, com o anúncio das primeiras alterações no genoma de embriões humanos realizadas com o método relativamente prático da Crispr. E, talvez não por acaso, o pesquisador que reivindicou o feito anunciado nesta segunda (26) voltou a trabalhar numa universidade chinesa, depois de construir boa parte de sua carreira nos EUA, como membro de um programa de repatriação de talentos ao país.

Embriões modificados pela técnica Crispr - Mark Schiefelbein/AP

Os experimentos que teriam levado à geração dos bebês modificados ainda não constam de uma publicação oficial revisada por outros cientistas —o padrão-ouro de confiabilidade da ciência moderna—, portanto, vale olhar criticamente as afirmações.

Gerar uma criança com genoma “customizado” pela Crispr é, ao menos à primeira vista, muitíssimo mais simples do que clonar um ser humano (façanha que foi objeto de vários anúncios falsos na década passada e ainda soa distante da realidade). É algo já realizado de modo relativamente rotineiro com diversas espécies de animais em laboratórios mundo afora.

Tampouco há algo de particularmente mágico na modificação escolhida por He Jiankui e seus colegas para o primeiro teste. O alvo deles era o gene que possui a receita para a produção da CCR5, uma proteína que é um receptor, ou “fechadura” química, presente na superfície das células de defesa do organismo.

É nessa fechadura que o HIV (vírus da Aids) se encaixa, feito uma chave, abrindo então as células humanas para a invasão viral.

Algumas pessoas —em especial gente oriunda do norte da Europa— carregam naturalmente uma mutação em seu DNA que faz com que elas não produzam direito o receptor CCR5. Com isso, o HIV não tem como entrar em suas células, de modo que elas são imunes à Aids. A intenção dos cientistas chineses era produzir, portanto, uma versão artificial dessa proteção nos futuros bebês.

Isso só é possível, no entanto, se as duas cópias do gene da CCR5 fossem igualmente inutilizadas (lembre-se de que, normalmente, todo mundo carrega duas cópias de cada gene em seu DNA, uma vinda do pai, a outra, da mãe). As primeiras informações sobre os experimentos dão conta de que nem sempre esse objetivo foi alcançado, o que significa que, em alguns casos, os bebês seriam só um pouco mais resistentes ao HIV do que a maioria das pessoas.

Além disso, quase toda variação genética envolve custos biológicos, além de benefícios. Há indícios, por exemplo, de que a falta do CCR5 pode fragilizar o organismo diante de infecções por flavivírus (grupo dos causadores da dengue e da febre amarela, entre outras doenças). E, não sendo nem de longe perfeita, a Crispr tem potencial de produzir efeitos não pretendidos ao modificar, além do gene-alvo, outras regiões do DNA. Ninguém ainda tem certeza dos possíveis riscos da tecnologia quanto a esse aspecto.

Não se pode esquecer, ademais, que a biotecnologia é um negócio global multibilionário. He Jiankui é sócio de duas empresas e se deu ao trabalho de iniciar uma campanha de relações públicas para testar o apoio dos chineses à sua abordagem antes de anunciar seus resultados (pesquisas de opinião revelaram que mais de 60% deles apoiavam o uso da Crispr em humanos desde que o objetivo fosse curar ou prevenir doenças, número similar ao que se vê nos EUA).

O anúncio, portanto, ainda que soe afoito do ponto de vista científico, tem um inevitável componente de marketing.

A questão mais ampla —a de estarmos ou não presenciando o primeiro passo de uma mudança significativa na trajetória da evolução humana— ainda deve demorar décadas para ser respondida.

Alterar o gene da CCR5 é trivial. Muito mais complicado seria tentar produzir “super-humanos” em qualquer sentido da palavra, simplesmente porque hoje ninguém faz a mais vaga ideia de onde seria preciso mexer no genoma humano para, digamos, garantir que seu filho seja mais inteligente do que 99% das pessoas.

A única certeza é de que seria preciso mexer, ao mesmo tempo, em milhares de genes —com todo o imenso potencial para falhas e efeitos não pretendidos numa operação tão complexa. Sem falar, é claro, num fator ainda mais incontrolável: o efeito do ambiente sobre as bases oferecidas pelo genoma.

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