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Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

Descrição de chapéu Coronavírus

No 'Casa Grande e Senzala' da pandemia, governo pede sacrifício aos já vulneráveis

Maioria das imagens da campanha #OBrasilNãoPodeParar retrata pessoas negras e pobres

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O vídeo do governo que lançou a campanha #OBrasilNãoPodeParar, feita sem licitação e a um custo de quase R$ 5 milhões, é a tradução da estrutura social classista e racista de que o Brasil não conseguiu se livrar desde a escravidão.

Das 23 imagens escolhidas para amparar a ideia de que é preciso voltar ao trabalho, 19 retratam pessoas negras (54% se autodeclaram pretos ou pardos no Brasil) e 18 envolvem situações ligadas à pobreza, à informalidade ou à baixa remuneração (25% dos brasileiros vivem em situação de pobreza).

O chamado do governo para que o povo retome as atividades como forma de manter o giro da economia puxa o tapete da estratégia das autoridades sanitárias do país, de boa parte da Europa e da Organização Mundial da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. Ela determina que, para evitar o colapso do sistema de saúde numa enxurrada de casos de Covid-19, as pessoas devem ficar em casa, isoladas.

Mas parece ser difícil ao governo e sua equipe econômica admitirem que a mão invisível do mercado não dá conta da complexidade da situação e são necessárias medidas que protejam os vulneráveis.

Ao contrário, o que se vê na peça publicitária do governo, é uma convocação para os brasileiros mais pobres --e 75% deles são negros-- voltem ao batente produzir a riqueza de que pouco ou nada usufruem enquanto a elite branca faz seu isolamento com aulas virtuais para as crianças, delivery e yoga em lives de Instagram. A Justiça Federal proibiu o presidente de adotar medidas contra o isolamento.

Pesquisa Datafolha sobre a pandemia mostrou que quanto menor a renda familiar do brasileiro, maior a expectativa de ter a vida financeiramente afetada por um longo período por conta do coronavírus.

Pesquisa do DataFavela apontou que 70% dos moradores dessas comunidades já tiveram a renda reduzida desde o início do contágio no Brasil, enquanto 72% não tem reservas nem para uma semana sem a renda do trabalho ou bico.

Sem uma proteção social emergencial como alternativa, a mensagem de que o Brasil não pode parar se apresentar a esse estrato como única saída.

“Esse vídeo [da campanha do governo federal] é uma obra-prima da sociologia brasileira. Ele aponta qual é o segmento da população que não pode parar e que deve se expor a uma doença mortal ou mesmo morrer para manter a economia e os lucros das empresas”, critica Douglas Belchior, da Coalizão Negra Por Direitos, coletivo de organizações do movimento negro co-autor de uma notícia-crime contra o presidente. “Trata-se de uma política genocida”, opina, projetando uma provável desproporção na morte de pessoas negras.

A pandemia do coronavírus entrou no Brasil por um aeroporto internacional, via elite globalizada, e estreou nos hospitais privados de excelência, com todos os recursos.

Mas a primeira empregada doméstica que soubemos ter morrido vítima covid-19 no país não havia adquirido o vírus numa viagem à Disney, mas de sua patroa, que o trouxe das de férias na Itália, como nos lembra o texto de Preta Rara publicado nesta Folha.

A Covid-19 deve causar mais e maiores danos em conglomerados de alta densidade com problemas de água e esgoto, que são atendidos por uma rede pública em que faltam equipamentos, pessoal e recursos.

“A favela não deixa de fazer o isolamento por ser ignorante, mas porque precisa colocar gasolina no seu carro, entregar comida na casa, varrer o chão do supermercado, recolher o lixo”, avalia Celso Athayde, fundador da Cufa (Central Única das Favelas), para quem, sem isso, essas pessoas “não teriam o que comer”.

“Ou a sociedade de alta renda divide a riqueza que a favela os ajudou a produzir, ou vai dividir as consequências da miséria, o caos”, disse.

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