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Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Descrição de chapéu Argentina América Latina

Getúlio Vargas, o argentino

Septuagésimo aniversário do suicídio ilustra face radical do político gaúcho

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No último dia 24 completaram-se 70 anos da morte de Getúlio Vargas. A pouca repercussão parece indicar que o tempo do getulismo passou. Mais do que seu legado, o que sempre me chamou atenção sobre Getúlio foi sua morte: a opção radical pelo suicídio. É uma morte que cairia bem no argentino Juan Domingo Perón, um político dado a dramas e extremismos e de trajetória muito mais rocambolesca que Getúlio.

Getúlio foi muitas coisas na vida: positivista, revolucionário, constitucionalista, ditador sanguinário, presidente democrático, articulador de primeiro plano e de bastidores, pai amoroso, latifundiário, industrialista, ambíguo em plena Segunda Guerra Mundial, criador dos direitos trabalhistas, ministro da fazenda da República Velha, presidente de província, senador, acadêmico da ABL e muitos etc.

O então presidente Getúlio Vargas durante cerimônia de sua posse no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. A data marca o segundo governo de Vargas, que foi eleito pelo PTB com 47,7% dos votos. - Folhapress

Sempre agiu politicamente fazendo valer suas vontades de condutor de manadas. Mas buscava negociar compondo maiorias, estabelecendo pactos e propondo articulações políticas. Quando era vitorioso nesta empreitada, sabia ser radical com os opositores, especialmente na ditadura do Estado Novo, cujos porões não devem nada aos do período da ditadura militar. Getúlio foi sempre, a seu modo, um negociador. Daí chama a atenção sua morte trágica, extrema, radical e como toda morte suicida, chocante.

A leitura hegemônica que se implantou sobre sua morte foi a da vitória da negociação varguista. Mesmo morto, Getúlio teria sido vitorioso. Nesta tese, a morte abrupta foi sua bala de prata, pois conseguiu "adiar" o golpe militar em dez anos.

O contexto pré-suicídio era de fato tenso. O crime da rua Tonelero daquele agosto de 1954 elevou muito a temperatura já alta. Gregório Fortunato, segurança particular de Vargas, foi acusado de tentar matar Carlos Lacerda, adversário político de Getúlio. O presidente seria o mandante? —era o que todos se perguntavam.

Segundo o biógrafo Lira Neto, que escreveu três ótimos volumes biográficos sobre Getúlio, sua morte radical teve a ver com dois aspectos. O primeiro relaciona-se a uma reportagem publicada nos dias seguintes ao atentado da rua Tonelero, que mostrou que Maneco Vargas, filho de Getúlio, teria vendido uma fazenda da família a Gregório Fortunato. O segurança adquiriu a fazenda graças a um empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ex-ministro do Trabalho. Essa acusação teria tirado Getúlio de sua habitual frieza e capacidade de negociação política.

O segundo aspecto tem a ver com o histórico pessoal suicida de Vargas. O presidente escreveu várias cartas de despedida ao longo da vida, todas elas mantidas em segredo. Mesmo a carta final teria sido reescrita algumas vezes. Daí por que não assustou os correligionários que com ela tiveram contato, pois não era a primeira vez que viam tal expediente radical em mãos, até então sempre adiado.

Vargas ainda tentou negociar com os golpistas. Propôs um afastamento temporário da presidência até que o crime da rua Tonelero fosse averiguado. Mas dessa vez não conseguiu fazer valer sua vontade de condutor das elites e do povão. E, como ato derradeiro, vislumbrou a morte. Acabou se matando na manhã do dia 24 de agosto.

Curiosamente, a morte de Vargas cairia melhor em Perón, um político de estatura semelhante a Vargas em seu país, mas que teve uma morte quase vergonhosa para alguém de sua estirpe.

Militar, Perón subiu ao poder através de um golpe em 1943. Outro golpe militar o retirou do poder em 1945 mas, novelisticamente, ele foi reconduzido à presidência através da atuação de sua mulher, a atriz Evita Perón, e das massas sindicalizadas. Ficou de 1946 a 1952 governando através de um discurso radicalizado contra as elites, num tom muito acima do de Vargas.

No mesmo período a Argentina recebeu vários nazistas fugidos da Segunda Guerra Mundial. Tudo sob o lustre do peronismo que, na luta contra o "imperialismo" das potências ocidentais tradicionais, foi capaz de relativizar até o nazismo.

Num drama golpista sem comparação com as deposições de Vargas, a Casa Rosada foi bombardeada pela força aérea argentina em 1955, cujo ataque matou mais de três centenas de pessoas. Perón escapou, mas foi apeado do poder. Haja drama! Isso sem falar na morte de Evita Perón em 1952 e nas rocambolescas histórias de necrofilia com seu cadáver dentro e fora da Argentina.

Os dezoito anos de exílio de Perón foram incomparavelmente mais longos que os meros cinco de Vargas, que atuou como senador entre 1946 e 1950 e tramou sua volta a olhos vistos, sempre fazendo pactos de todos os lados. Perón só voltou ao poder em 1973, num curto mandato. Morreu de ataque cardíaco em 1974, aos 78 anos. Deixou no lugar sua mulher e vice, Isabelita Perón, que, sem a força popular de Evita, foi retirada do poder pelo golpe militar de 1976. Até hoje a política argentina tem na divisão radicalizada entre peronistas e anti-peronistas uma de suas maiores marcas.

A trajetória de Perón foi radical. Sua morte não. Com Vargas foi o oposto. Quase sempre o político gaúcho foi um fluente negociador, um mediador político. Em sua morte, foi um extremista. As mortes inverteram as personalidades e as trajetórias dos dois maiores líderes populares de Argentina e Brasil.

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