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Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

Seriam os religiosos negacionistas?

A disposição negacionista parece variar com as redes de proximidade e confiança nas quais as pessoas compartilham crenças e identidades

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Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Quem escreve é Rodrigo Toniol, professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp.

Em 2015, numa das pesquisas mais amplas e sistemáticas envolvendo temas característicos dos negacionismos, o Pew Research Center correlacionou a filiação religiosa dos entrevistados e suas posições quanto ao reconhecimento de que a ação humana é o principal causador da mudança climática.

Realizada apenas nos Estados Unidos, os resultados iniciais mostraram que, enquanto católicos hispânicos e não-religiosos confirmam essa correlação na proporção de 77% para os primeiros e 64% para os segundos, entre brancos evangélicos essa taxa cairia para 28%. A divulgação dessa pesquisa teve ampla repercussão mundial e, particularmente no Brasil, mobilizou parte da opinião pública que rapidamente projetou supostas semelhanças com a realidade estadunidense.

Fiéis na Marcha para Jesus 2022 na praça Campo de Bagatelle, em Santana - Bruno Santos - 9.jul.22/Folhapress

Já naquele período, foram ensaiadas afirmações sobre uma pretensa disposição negacionista entre evangélicos e pentecostais no país. Poucos meses depois da divulgação inicial, contudo, o Pew Research Center refez os cálculos a partir de controles multifatoriais e identificou que o pertencimento religioso como fator isolado não produz nenhuma tendência estatisticamente válida.

De modo interessante, foram identificadas outras dimensões como determinantes, em particular, a de classe social. Ou seja, o que distanciava a posição de católicos hispânicos e brancos evangélicos quanto ao aquecimento climático não era tanto o fator religioso, mas, antes, as classes nas quais esses grupos estão inseridos.

Fenômeno similar parece ocorrer no Brasil. Em março de 2021, durante a pandemia de Covid, o Instituto Datafolha segmentou pelo pertencimento religioso dos respondentes os resultados de uma pesquisa nacional que avaliou o medo dos brasileiros com relação à Covid-19 e a disposição da população em se vacinar.

"Evangélicos têm menos medo de Covid e creem menos em vacinas" —com essa manchete estampada na capa do jornal, foi divulgado que enquanto 32% dos católicos afirmam não temerem a pandemia, esse mesmo índice para os evangélicos é de 46%. A distância entre os dois grupos aumenta quando a questão é a decisão por não se vacinar, 6% entre os católicos e 14% entre evangélicos.

Mais uma vez, a despeito da ampla divulgação, quando esses dados são cruzados com outros, tais como o apoio individual ao governo Bolsonaro, a força explicativa do fator pertencimento religioso diminui, enquanto aumenta a relevância do alinhamento ou não com o atual governo.

Em março de 2021, num dos piores momentos da pandemia no país até então, uma pesquisa do Datafolha foi contundente ao demonstrar que o apoio ao governo Bolsonaro é o fator determinante do comportamento e da percepção dos entrevistados sobre a pandemia. Naquele momento, entre os apoiadores de Bolsonaro, 42% diziam que a pandemia está totalmente ou parcialmente controlada, enquanto nos segmentos que consideravam o governo regular, ruim ou péssimo, apenas 10% viam uma situação controlada, enquanto 90% reconheciam descontrole.

Três aspectos dessas pesquisas e de suas repercussões são fundamentais. O primeiro é que não é possível afirmar a existência de uma correlação simples e direta entre filiação religiosa e posicionamentos negacionistas, seja com relação à mudança climática entre estadunidenses, seja sobre a pandemia entre os brasileiros. Essa observação, contudo, raramente recebe a atenção no debate público, que insiste em afirmar correlações fortes entre religião e negacionismo científico.

Em segundo lugar, é importante e saudável lembrar que o campo religioso é internamente diverso e segmentado. Quer dizer, mesmo entre as várias denominações "evangélicas", são diversos e divergentes os posicionamentos e respostas diante da pandemia por parte das comunidades religiosas. Enquanto parte delas tem atuado no sentido de oferecer "curas milagrosas", outros grupos articulados em bloco se posicionam publicamente em defesa da ciência e das recomendações técnicas feitas por pesquisadores, instituições e autoridades sanitárias.

Por fim, a crescente presença de lideranças religiosas na vida política do país nas últimas décadas cria duas situações potencialmente contraditórias. Por um lado, tais líderes político-religiosos falam em nome dos fiéis de suas comunidades, reivindicando para si o lugar de porta-vozes de um grande contingente de fiéis. Por outro lado, as atitudes nas bases dessas comunidades não necessariamente se alinham com a postura de quem se pretende o "porta-voz político-religioso" dessas bases.

Em que pese essa discrepância entre bases e lideranças, são os posicionamentos desses líderes que acabam por adquirir maior relevo no debate nacional e terminam sendo equivocamente apresentados como representativos absolutos de suas comunidades.

Assim, não é possível afirmar a existência de uma relação causal entre religião e negação da ciência. Isso porque a disposição negacionista parece variar com as redes de proximidade e confiança nas quais as pessoas compartilham crenças e identidades, sendo o fator religioso apenas um ao lado de outros fatores operantes nessas redes.

Além disso, é preciso compreender as comunidades religiosas tomando como ponto de partida o fato de que elas são absolutamente diversas entre si. Essa diversidade não se expressa apenas em termos teológicos, mas também no espectro político em relação ao qual os grupos religiosos podem se identificar.

Assim como existem evangélicos conservadores, existem também associações de evangélicos progressistas. Mais ainda: assim como o campo católico fomentou movimentos como o Integralismo, ele deu também origem às Católicas pelo Direito de Decidir, que lutam pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Essa diversidade política e teológica do campo religioso no Brasil tem sido invisibilizada devido à presença de alguns de seus líderes na vida política nacional mais recente, de líderes conservadores, sobretudo. Essas lideranças, que muitas vezes gozam de protagonismo midiático, parlamentar e partidário, embora pretendam falar em nome de suas bases, não necessariamente representam com fidelidade as percepções e as atitudes delas.

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