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Precisamos repensar o propósito das corporações

Ideia de que empresas devem buscar apenas o lucro conduz a resultados sombrios

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As corporações empresariais estão entre as mais notáveis das inovações humanas. Elas são exércitos em guerra pela supremacia nos mercados. A simbiose resultante entre comando e competição se provou muito frutífera. O desenvolvimento econômico sem precedentes visto desde a metade do século 19 teria sido impossível sem os recursos e capacidades organizacionais de uma grande invenção: a sociedade por ações de responsabilidade limitada.

Mas, como argumenta Colin Mayer, da Saïd Business School, Universidade de Oxford, em seu novo, radical e notável livro, "Prosperity", nem tudo vai bem com as corporações. O público cada vez mais vê sociopatia nas corporações, e portanto as considera indiferentes a tudo exceto o preço de suas ações; já os líderes dessas empresas são vistos como indiferentes a tudo exceto suas recompensas pessoais. A julgar pelos salários reais e pelos números da produtividade, seu desempenho econômico recente vem sendo medíocre. Além disso, as corporações foram autorizadas a erodir a concorrência, como apontam Jonathan Tepper e Denise Hearn em outro livro recente e importante, "The Myth of Capitalism". Em resumo, más ideias tomaram as corporações, e permitiram que a competição perdesse vigor.

Ações na Bolsa brasileira - Daniel Marenco/Folhapress

O principal alvo de Mayer é o argumento de Milton Friedman de que o propósito de uma companhia é realizar lucros e só, respeitando apenas as leis e (um mínimo de) regulamentação. Hoje, isso é apresentado como a obrigação de maximizar o valor para os acionistas. Por trás disso está a visão, que remonta a Adam Smith, de que o principal desafio é o "problema de agência" –o da relação entre os proprietários e seus agentes (os gestores). "O problema com a visão de Friedman", insiste Mayer, "é que ela é desesperadamente ingênua". Baseia-se em "modelos econômicos simples e elegantes que simplesmente não funcionam na prática".

A ideia de que empresas busquem lucros e apenas lucros, na opinião dele, pode apenas produzir maus negócios e péssimos resultados. Isso acontece por três razões: a humana, a social e a econômica.

A primeira delas é a mais importante. O lucro não é um propósito econômico por si só. O lucro é uma condição para –e o resultado de– atingir um propósito. O propósito pode ser fabricar carros, entregar produtos, disseminar informações, ou muitas outras coisas. Se uma empresa transforma fazer dinheiro em seu propósito, fracassará nisso e em sua atividade básica.

Segundo, quando os legisladores permitiram a incorporação de sociedades com responsabilidade limitada, não estavam pensando no lucro, mas nas possibilidades econômicas criadas por uma grande aglomeração de capital, esforço e recursos naturais. Não menos importante, os compromissos de longo prazo incorporados pela corporação permitem que ela tenha a inovação como foco: talvez a inovação mais importante da corporação tenha sido fazer da inovação uma atividade rotineira.

Por fim, a teoria central da companhia veio de Ronald Coase (1910-2013), que argumentou que o mercado poderia ser uma maneira menos eficiente de organizar produção do que uma organização hierárquica, por conta dos custos de transação. Isso é outra maneira de afirmar que mercados são incompletos, especialmente no que tange a compromissos de longo prazo. Mas é bastante ilógico argumentar que é possível ignorar esse aspecto incompleto do mercado ao decidir como empresas devem ser dirigidas. Se a justificativa para a existência da corporação é substituir contratos relacionais, e portanto a confiança, por contratos explícitos, e portanto a possibilidade de aplicação legal, não se pode ignorar esse aspecto na decisão sobre o propósito das empresas e sobre quem deveria controlá-las.

Acima de tudo, de que maneira  essa confiança em longo prazo pode ser sustentada se o objetivo constantemente reiterado da corporação é servir aos interesses daqueles que têm pouco compromisso para com ela, enquanto o controle sobre elas é confiado àqueles que menos conhecem suas atividades e que menos risco correm em caso de fracasso? As duas coisas, de fato, são descrições razoáveis sobre a posição dos acionistas nas empresas de capital aberto com distribuição acionária ampla.

Os acionistas têm pouco compromisso para com a companhia porque, diferentemente dos empregados, dos fornecedores diretos e dos locais em que elas operam, eles podem abandonar seu envolvimento na empresa de forma instantânea. Os acionistas são os menos informados porque não estão envolvidos na atividade da companhia.

Um aspecto crucial é que, contrariando a sabedoria econômica convencional, os acionistas no mundo real não são os portadores do risco residual do negócio (exceto com relação aos detentores de títulos de dívida). O aspecto incompleto do mercado garante que empregados, fornecedores e localidades também arquem com riscos significativos. Além disso, os mercados de ações permitem que os acionistas diversifiquem seus riscos em todo o mundo, algo que os trabalhadores, por exemplo, não têm esperança de fazer com respeito ao seu estoque de conhecimento específico e aos seus relacionamentos profissionais dentro de uma companhia. Além disso, todo mundo mais sofre o risco de comportamento oportunista por parte dos acionistas. Isso com certeza deve minar os compromissos dos demais envolvidos.

Além disso, diante do lema de maximizar o valor para os acionistas e diante da incapacidade dos acionistas para monitorar os gestores, as recompensas cada vez mais estão vinculadas não ao desempenho da empresa na obtenção de seus objetivos, e sim a lucros contábeis e preços de ações - duas coisas sujeitas a manipulação. Há quem argumente que isso resultou em remuneração excessiva (o tema do livro "Are Chief Executives Overpaid?", de Deborah Hargreaves) e em subinvestimento crônico.

Esses livros dão a entender que o capitalismo está substancialmente quebrado. Cheguei relutantemente à mesma conclusão. Não estou defendendo o abandono da economia de mercado, e sim companhias melhores e mais competição.

A implicação do livro de Mayer é que o modelo canônico anglo-saxão de governança empresarial, com igualdade entre acionistas, distribuição ampla de ações, maximização de valor para os acionistas e o mercado no controle, é apenas uma das muitas maneiras possíveis de estruturar uma corporação. Não há motivo para crer que seja sempre a melhor. Em alguns casos, funciona. Em outros, como no de bancos operando com alta alavancagem, não funciona, claramente. Deveríamos encorajar explicitamente o florescimento de milhares de flores de governança e controle. Veremos como isso funciona.

Ao mesmo tempo, a implicação do livro de Tepper é que, da mesma forma que fomos excessivamente descuidados em pensar sobre a natureza e propósito da corporação, também nos descuidamos ao avaliar como os mercados a que elas estão incorporadas deveriam funcionar.

Quanto maiores as corporações, mais competitivos precisam ser os mercados. A corporação é de fato uma grande invenção. Mas o que tornou sua contribuição tão notável foram, acima de tudo, os mercados competitivos dos quais elas eram parte. Quanto menor a competição, menos o lucro revelará sobre a verdadeira contribuição econômica de uma companhia. Precisamos consertar a corporação e a competição ao mesmo tempo.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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