Releia entrevista do repórter policial Gil Gomes à Folha, há 35 anos

Então líder de audiência em SP com programa de rádio, o jornalista comentou previsão de que morreria em 1983

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Leão Serva
São Paulo

Abaixo você confere entrevista de Gil Gomes publicada pela Folha em 28 de setembro de 1983.

 

Todos os dias, há 15 anos, Gil Gomes apresenta pela rádio um programa revelando os casos mais importantes da pauta policial do dia anterior. Quando começa, exatamente às 8h, no momento em que Zé Betio se despediu dos ouvintes, Gil dá início a "mais uma edição de notícias". "E este que lhes fala, Gil Gomes diz... (alguns segundos de silêncio)... Bom dia!!!".

No entanto não são só os crimes o foco da atenção em seu programa, mas sua narrativa. Munido de um breve resumo do fato, um papel com algumas das informações mais importantes sobre os envolvidos na ocorrência, ele vai narrando, prendendo a atenção de pouco mais de um milhão de ouvintes na cidade de São Paulo, repetindo frases, descrevendo e reescrevendo crimes. Gil marcou profundamente o panorama cultural de São Paulo, até mesmo da cultura "in". Arrigo Barnabé, por exemplo, baseou sua descrição do "terrível bandido Clara Crocodilo", na forma como Gil descreve seus personagens, que, segundo o compositor, foi a primeira impressão que teve de São Paulo.

Quem tiver dele apenas a impressão radiofônica não pode esperar senão uma imagem soturna, algo como um vampirão, eternamente a rondar o sangue, os casos mais horripilantes da pauta jornalística. Imaginava-o um Drácula, encontrei-o mais parecido com um Nosferatu de Herzog. Um homem preso a uma contingência, quem sabe angustiado, tímido, com um sorriso contido, querendo ganhar a simpatia do interlocutor. No rádio, para os ouvintes, ou para repórteres de eventuais entrevistas, ele assume sempre o ar do velho contador de histórias, cativante. "A segunda profissão mais velha do mundo [sorri malicioso] é o contador de histórias. Só que antes ele reunia o público na praça, agora eu faço no rádio, porque existe o rádio."

Até em sua antessala, a impressão soturna continua. Sobre a mesa de trabalho de um de seus jornalistas, um paletó deixa surpreender o revólver. Mas logo ele o tira dali e sai da sala. Impressão pesada, de calabouço ou delegacia.

Quando ele nos recebe, porém, tudo parece se transformar. Talvez um bom ator, ou quem sabe por ter um coração resguardado, o certo é que o nosso Nosferatu é um homem simpático.

*

Folha - Há uma grande quantidade de pessoas que têm o hábito do café da manhã acompanhado de Gil Gomes. Você acha que está influenciando as pessoas, evitando crimes, por exemplo, ou há apenas a curiosidade de ouvir os casos, e quanto mais chocante melhor?
Gil Gomes - O desejo é evitar os crimes. E acho que tudo é evitável. Nós vivemos na era da justificativa [Começa a narrar com a voz dos programas, como se fosse um personagem que argumentasse de forma contrário à dele]. Tudo é explicável, tem Freud, psiquiatria, psicologia. No julgamento, o réu é um "coitadinho". Então, se não é possível acabar com as causas dos crimes, deixa rolar, "a causa é social". Não. Infeliz de mim quando achar que, porque não posso acabar com as causas, deixo as coisas rolarem.

Folha - Uma curiosa dualidade deve se abater sobre os jornalistas policiais que têm no crime sua fonte de audiência. Ao mesmo tempo lutam ou creem na necessidade de acabar com a violência criminal, têm nas grandes tragédias a fonte de sua renda. Que seria se o crime acabasse amanhã?
GG -
O crime hoje é muito facilitado, no fim do século 20. Nós, por exemplo, acreditamos hoje que o menor de 18 anos pode fazer o que quer, e, aos 18, ele vai para a rua. Ora, a impunidade vai viciando. Hoje tem um milhão de associações de defesa do preso, mas não se defende o trabalho do preso. As pessoas têm boa vontade, mas eu sempre digo que a "bondade malfeita é maldade". Você vê um cachorro preso, você fala 'Ah solta o cachorrinho' [faz voz de choroso, como em seu programa], solto ele vai lá e morde dez pessoas. As explicações não podem interromper a ação. Dizer que o preso é coitadinho porque a mãe era prostituta ou qualquer coisa assim não vai mudar os crimes que ele comete.

Folha - Você está há 11 anos no primeiro lugar de audiência. Você não pensa em mudar, tentar mais um horário, ou quem sabe a TV?
GG -
Eu comecei às 6 da tarde, depois ao meio-dia, que era péssimo. Agora este horário é bom, é o horário nobre do rádio. Mas o rádio e a TV são complementares. Então não dá para confundir as coisas. O rádio na TV é chato, bem como esses apresentadores de rádio que querem ser estrelas de TV são chatos também. Eu gosto de rádio porque na TV você é meio autômato, você é levado a ver o que o autor quer. No rádio você imagina. Te explico: Eu digo 'Que corredor compriiiido', e o ouvinte imagina o corredor que ele quiser. Na TV, não, ele só tem o corredor que está lá.

Folha - Mas, se os ouvintes imaginam tudo, como será que eles imaginam a cara deste homem que pelas manhãs grita e esperneia contra criminosos, estupradores e todo tipo de violência, as mais abomináveis?
GG - Até há pouco tempo eu ficava incógnito. Acho que o cara do rádio deve ficar sumido. Te explico... [vem com mais uma explicação do tipo o espectador imaginando. Mas no fundo no fundo eu acho que o caso dele é de se sentir perseguido.]

Folha - Você ao vivo é mais doce e sem a agressividade do rádio, não?
GG - Eu acho que sou. Sou um homem feliz, não sou aquele revoltado do rádio. Eu tenho medo da TV por causa disso. Você está muito exposto como é. As poucas vezes que fui à TV fiquei muito nervoso. Na última, em maio, eu fui receber o prêmio no Flávio Cavalcanti e, quando saí de lá, fui parar no hospital, a única vez na minha vida que fui pro hospital.

Perseguições e ameaças

Folha - Em toda a mitologia em torno do apresentador de rádio Gil Gomes exista uma particularmente propalada, de que há grande número de ameaças a ele, que ele é perseguido por bandidos etc. O que é verdade nisso?
GG - Antigamente, o criminoso era um cara só. Hoje não, as máfias estão cada dia mais fortes, e com isso você vai falando da corrupção, dos crimes e vai pisando no pé deles. Em qualquer lugar, você vê escrito, 'Compra-se ouro'. Esse ouro é roubado, derretido e explorado pelas máfias. A mesma coisa o jogo do bicho. Tanto eles são fortes que derrotaram a ilegalidade. E eles ficam querendo se livrar daqueles que lutam contra eles.

[Nosso homem é um quixote, em luta interminável contra a corrupção. Leitor insaciável —​"sou um rato de biblioteca"—, Gil começou seu programa, pelas contas é fácil de ser ver, em 68, um ano conturbado, marcado pelo Esquadrão da Morte.]

Folha - Em 68, havia um bandido legendário, o Bandido da Luz Vermelha, e muito medo dos crimes. Como você o vê surgindo nesse tempo?
GG -
O Bandido da Luz Vermelha hoje seria um zé ninguém. A imprensa não tem mais tempo de seguir um criminoso. Naquele tempo havia uma média de seis a oito latrocínios por mês. Hoje tem mais do que isso por dia. Ele foi quase uma criação da imprensa, pois ele, que era impotente, apareceu nas manchetes como estuprador de diversas mulheres. O que havia de mais marcante naquele ano era o Esquadrão da Morte.

Folha - Você tinha medo de trabalhar numa época de Esquadrão da Morte?
GG -
Eu nunca tive medo do Esquadrão da Morte. Eu tinha medo é de bandido. E a população também. Os sete, oito latrocínios por mês daquela época, hoje é pouco. Como o surgimento do Esquadrão da Morte, ficou provado que bandido quando tem medo, tem uma autoridade sobre ele, ele se amoita, ele se resguarda. Quando surgiu o Esquadrão, a média de crimes caiu para um ou dois. Eu sou contra o Esquadrão porque o que não pode é matar. Por isso eu sou contra a pena de morte também.

Folha - Da mesma forma que naquele ano havia um bandido supereficiente e marcante, houve também a sua antítese, um superpolicial, eficientíssimo que foi o Fleury. Mas a sua eficiência não diminuiu o crime. Como você vê isso?
GG - Era uma pessoa sozinha contra o crime. Acho que, se ele continuasse vivo, a coisa teria evoluído muito. Eu era muito amigo do Fleury, tinha grande admiração por ele.

Folha - Mas ele não colaborou com a corrupção policial?
GG -
Acho que não, ao contrário. [Subitamente faz um sorriso, corta o papo e diz, mais simpático do que nunca] Rádio? Vamos falar de rádio?

Produção de notícias

Folha - Mas como se constroem as notícias que vão ao ar?
GG –
Eu tenho uma equipe de sete jornalistas que passam o dia esperando ver o que acontece, vão atrás do fato, perguntam à família, aos amigos, checam tudo. Quando eu chego aqui na rádio às 6h30, começamos a selecionar e pôr em ordem os casos. Às vezes, às 10 para as 8h ainda não sei qual caso que vai entrar.

[Gil apareceu como repórter famoso em rádio antes mesmo de seu programa policial. Conta-se que um dia teve que cobrir um incêndio no prédio da Rádio Marconi, e aí percebeu que tinha vocação para contador de histórias. O certo é que antigamente ele mesmo ia atrás dos fatos, acabando por solucionar alguns crimes bem antes da polícia e então levava a fama do Sherlock radiofônico.]

GG - Eu já solucionei mais de 123 casos antes da polícia. Alguns era só chegar e perguntar nas casas perto. Alguém sabia, mas não tinha sido arguido. Outros casos eram de solução mais difícil. Mas hoje não trabalho mais nos casos. A equipe é que trabalha, e eu controlo e cobro o bom trabalho deles.

Folha - Gil, há poucos dias você apareceu no noticiário turfístico dos jornais, pondo em leilão cerca de 50 cavalos de raça. Que faceta é essa?
GG -
O cavalo é apaixonante. Ele tem modos próprios, chega até a parecer que tem “filosofia”. Eu um dia comprei um cavalo, sem conhecer, e era um campeão. Então comecei a comprar outros, e nunca mais acertei. Agora eu vendi porque estava dando muito trabalho, e depois começo de novo, quem sabe?

Folha - O Jóquei é frequentado pela alta sociedade, pela elite econômica. Como você é visto ali, como um homem do jornalismo policial?
GG -
De uma forma esplêndida. Tem gente que não sabe ver números. Mas, se eu tenho 1 milhão de ouvintes e 5% de classe A, isso quer dizer 50 mil pessoas, mais do que qualquer FM voltada para a classe A. Eles ouvem, perguntam sobre os casos que eu conto. Porque hoje em dia a segurança é questão fundamental para todas as classes, e não só a C e a D, como na década de 60.

Folha - Você disse que é um grande leitor. Você lê os clássicos policiais?
GG -
Sim, eu leio Hitchcock, Arsene Lupin, Agatha Christie e tudo o que me aparece na mão, porque esses livros vão nos ensinando a técnica narrativa , e a gente vai usando. A gente é muito influenciável. Você, se ouvir vários dias o meu programa, vai ficar com uns tiques que são meus.

Família sob tensão

[O homem se esconde atrás do trabalho. Trabalha, trabalha e não olha à sua volta. Em uma entrevista à Folha, há pouco mais de um ano, ele dizia que a paisagem que ele mais via era a de seu escritório de trabalho. Mas e a família?]

Folha - Em meio a esse clima de tensão, como sua família reage?
GG -
Minha mulher me pede muitas vezes para que eu pare de falar de coisas que criem tensão. Mas eu não poderia ser omisso. Imagino que seja péssimo para a pessoa que fica em casa esperando o marido que não sabe se vai voltar. Mas eu não poderia parar de fazer o que sei fazer. Nas últimas semanas ela tem chorado muito por causa de umas previsões de astrólogos que divulgaram na Bahia a ideia de que eu vou morrer este ano. Quando ela ficou sabendo, chorou, pediu para eu parar, mas eu não vou parar. Quando você acostuma a viver assim, você já não teme as ameaças, você sente mais segurança. Quer dizer, se tem muita gente tentando, um dia pode ser que acerte, vou fazer o quê?

[Paranoia ou mistificação (?), perguntaria um célebre escritor do início do século. O certo é que o homem, tão envolvido em casos de polícia, em crimes hediondos, começa a se imiscuir, participar do medo como os ouvintes que atinge. À medida que conta do medo reage com ironia; ao mesmo tempo, como se tivesse ao lado do seu pensamento a mesma trilha sonora que vai subindo de volume psíquico, atinge o êxtase ao comentar a possibilidade, o risco da morte.)

GG - Acho que não vai acontecer nada. Mas tem uma coisa. Com tanta gente querendo te fazer mal, um dia um pode acertar.
 

Erramos: o texto foi alterado

O título anterior deste texto informava erroneamente que ele era de 25 anos atrás. Na verdade, são 35 anos desde a entrevista.

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