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Sem dados, achismo sobre o coronavírus continua a se impor, diz imunologista

Médico português diz que cooperação global seria ideal para produzir vacina, mas que é improvável que ocorra

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Lisboa

Um dos principais nomes da ciência portuguesa e referência internacional na formação de grupos de pesquisa interdisciplinares, o médico imunologista António Coutinho critica a maneira como governos do mundo têm preparado a reabertura após o confinamento contra a pandemia do novo coronavírus.

“O achismo continua a se impor, porque não há dados suficientes para se poder tomar posições que são baseadas na ciência”, avalia.

Antonio Coutinho, médico imunologista português - Micael Hocherman

Coutinho, que em 12 anos transformou o IGC (Instituto Gulbenkian de Ciências), em Oeiras (grande Lisboa) em um dos destaques na ciência da Europa, diz que o ideal seria uma cooperação global para a criação de uma vacina. Mas, devido ao interesse financeiro, esse é um cenário improvável, diz ele.

Em entrevista por videoconferência à Folha, o imunologista disse que a testagem em massa para saber quem já foi infectado é essencial, mas “pouco sexy” para políticos.

Sobre o Brasil, onde deu aula e participou de pesquisas, o médico demonstra perplexidade com as políticas de saúde pública do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).


O sr. é um grande defensor do rigor do método científico. Isto tem sido seguido?
Este é um período do ‘eu acho’. Muita gente acha que tem argumentos válidos, mesmo que não tenha dados para confirmar aquilo que vai dizer. Eu acho isso muito mau e, por isso, tenho sido muito silencioso durante este período.

O achismo continua a se impor, porque não há dados suficientes para se poder tomar posições que são baseadas na ciência. Começa a haver [informações embasadas] em alguns aspectos, mas, naquilo que provavelmente mais interessa às decisões políticas e às pessoas, como a abertura parcial, nós não temos absolutamente nenhum dado que nos possa levar a uma boa ou a uma má alternativa.

Eu estou a falar particularmente porque, em Portugal e em muitos outros países, não houve uma testagem em massa. Não houve para a presença do vírus e não houve, e nem está a haver agora, teste para a presença de sinais biológicos de anterior contato com o vírus, como os de anticorpos.
Por outro lado, acho que uma das coisas boas que o vírus nos trouxe foi uma boa reputação pública da ciência, porque as pessoas se dão conta de que, sem ela, não vamos resolver nunca o problema.

E por que não se tem tanta testagem? É falta de insumos ou de interesses?

[A testagem em massa] não é uma coisa que tenha um resultado espetacular e imediato. Demora algum tempo para fazer e não vai curar nada, tratar nada. É essa parte escondida do que é a investigação científica, de saúde pública, que não é atraente, que não é sexy, mas que é fundamental, se não estamos aqui só com achismos.

O teste utiliza uma reação PCR, que a maior parte dos laboratórios de pesquisa e biologia molecular usa todos os dias. No Brasil também. É uma estupidez não testar.

Como vê a aceleração de protocolos na corrida por uma vacina?

Os protocolos que são habitualmente seguidos na experimentação pré-clínica e clínica das vacinas vão ser encurtados, sobre isso não há dúvida. Isso quer dizer que vai haver dezenas de vacinas, já há quase 90 registradas, que vão ser experimentadas. Já estão pelo menos 18 em testes clínicos. Um esforço desse tipo na maior parte procura o lucro, já que é evidente que quem conseguir primeiro a vacina e vendê-la vai ganhar muito dinheiro.

É evidente que a coisa seria melhor se fosse cooperativa, mas eu acho que era esperar demasiado da humanidade.

Portanto, o que vai acontecer é que vão aparecer provavelmente várias vacinas ao mesmo tempo. Depois, vão aparecer outros trabalhos, daqui a um ano ou dois, quando já não houver epidemia nenhuma, a comparar qual é que é a melhor vacina, quando ninguém mais quer a vacina pra nada.

Alguns países têm defendido uma espécie de passaporte de imunidade, que indicaria que a pessoa já teve contato com o novo coronavírus. O que o sr. pensa desse tipo de proposta?

A questão de base é saber se uma infecção com esse vírus deixa alguma imunidade contra uma reinfecção, pelo menos por algum tempo no futuro. Nós não temos dados sobre o assunto, mas outros vírus parecidos com este deixam imunidade e, portanto, é provável.

Contrariamente a muitos colegas que estão muito chocados com essa ideia, a mim não me choca que a pessoa tenha, em sua cédula de vacinação, antes de ter uma vacina específica, indicação de que ela tem anticorpos contra esse vírus. Agora, penso eu, ninguém poderia dar, hoje em dia, a certeza absoluta de que essa pessoa não será nunca reinfectada. Fazer uma garantia desse passaporte de imunidade é uma estupidez.

Qual é o maior desafio deste vírus do ponto de vista imunológico?

A criação da vacina, até agora, não oferece questão interessante nenhuma. É fazer-se como sempre. É mais uma questão técnica do que científica. A clínica do vírus, por outro lado, é mais interessante cientificamente.

Ainda não percebemos porque algumas pessoas têm uma doença extraordinariamente agressiva, e outras não têm sequer sintomas da doença, não ficam doentes com infecção. Saber isso era talvez mais importante do que ter o passaporte de imunidade, porque aí poderíamos proteger melhor aqueles que são suscetíveis a ter uma doença grave e deixar andar à solta e contentes aqueles que sabemos que não têm suscetibilidade.

Depois, há questões muito importantes do ponto de vista do mecanismo da doença grave. Alguns dos doentes que acabam por morrer, e muitos dos que estão em fase crítica, têm o que se chama de uma ‘tempestade de citocinas’ que se vê em outros casos graves.

Estas são as duas perguntas científicas mais graves, que, na minha opinião, terão muito provavelmente a ver com genética, mas também podem ter a ver com questões ambientais e com o estilo de vida.

Houve muitos elogios a Portugal pela resposta do país à crise do coronavírus. O sr. pode comentar?

Acho que foi uma resposta razoável, essencialmente copiada de outros países europeus. Eu não acho que seja particularmente boa, mas há países que estão muito pior do que nós. Não foi tão má quanto os mais cínicos esperariam. Agora também não é uma Brastemp, como se diz no Brasil.

Em Portugal e noutros países, o que se fez foi tentar abrandar o ritmo da progressão para não arrebentar com o Serviço Nacional de Saúde e com os hospitais. Isso foi conseguido e é muito bom. Foi uma boa decisão, mas não somos os melhores do mundo.

O sr. pode fazer uma avaliação do que tem visto da situação no Brasil?

Eu não consigo fazer uma avaliação. Eu vou lendo que há um ministro que quer fazer confinamento e é posto na rua, que depois vem outro que diz que afinal não vai haver confinamento mas que, depois, diz outra vez que afinal vai haver confinamento sim.

É muito confuso, como afinal costuma ser esse governo brasileiro. Eu penso que, ao contrário do que se costuma dizer, que cada país tem o governo que merece, eu acho que o Brasil merecia melhor.

O nível de heterogeneidade nas estruturas sociais é tão grande que vai, certamente, levantar problemas muito específicos para o Brasil. Antes de se fazer qualquer julgamento, acho que vale olhar para o Brasil –e eu peço que me desculpem os brasileiros de eu dizer isso– como um estudo de caso.


António Coutinho, 73

Imunologista graduado em medicina pela Universidade de Lisboa e doutor pelo Instituto Karolinska de Estocolmo. Dirigiu o Instituto Gulbe Belkian de Ciência, em Portugal, onde dá nome a um programa de bolsas de estudos.

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