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Descrição de chapéu Mente Brasil no Divã

Mitos e preconceitos da 'loucura' entravam tratamento digno no Brasil

'Eletrochoque', abuso de medicamentos e internação compulsória entram no rol de polêmicas da saúde mental

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São Paulo e Rio de Janeiro

Já se vão 36 anos de estudos em eletrotécnica, física, filosofia e psicopatologia, mas às vezes ainda é pelo prisma dos 38 anos de esquizofrenia que Jorge Assis é visto. É um olhar educado, porém distante, descreve, isso quando não depreciador ou piedoso.

"O pior do estigma é o que as pessoas não falam", diz ele, narrando a marca que ficou quando, ainda jovem, viu sua popularidade e seus amigos evaporarem depois que a notícia de sua segunda internação psiquiátrica se espalhou pela universidade.

O exemplo, um dos diversos da sua vida, mostra como mitos e preconceitos acerca do que a sociedade entende como "loucura" excluem, entravam o acesso a tratamentos efetivos e, em última instância, deixam a saúde mental em segundo plano nos investimentos públicos.

A série Brasil no Divã

Reportagens investigam a explosão de problemas de saúde mental no Brasil e como o SUS tem lidado com os casos

  1. A explosão dos transtornos mentais no Brasil

  2. A capacidade do nosso sistema público

  3. O fim dos manicômios

  4. Mitos e preconceitos na saúde mental

  5. Temos cura?

A área continua rodeada de debates e tabus que incluem o "eletrochoque", hoje chamado de eletroconvulsoterapia (ECT), a rejeição e ao mesmo tempo o uso exacerbado de medicamentos e ainda as internações compulsórias determinadas pela Justiça.

Essas questões afetam uma parcela considerável dos brasileiros: 7% diziam ter diagnóstico de esquizofrenia, transtorno bipolar, outra psicose ou TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) em 2019, segundo o IBGE, juntando-se aos 10% com depressão e a uma parcela ainda maior de ansiosos e dependentes químicos.

É preciso voltar ao século 19 para entender que as pessoas com transtornos mentais já foram enxergadas como a degeneração da raça humana, explica Jorge, que há 10 de seus 58 anos ensina sobre o assunto aos alunos de medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Os manicômios onde elas eram aprisionadas só começaram a ser questionados na década de 1970. Mesmo assim, diz, "ainda existe a ideia de que a pessoa é violenta, não consegue cumprir compromissos como qualquer outra e não se deve manter uma amizade".

"O doente mental tratado não é perigoso", acrescenta Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que ressalta ainda o autoestigma gerado por essas visões. "Você falou que eu sou inferior, eu acredito. Isso é destrutivo, maltrata, faz com que a pessoa não busque ajuda."

Camisa de força exposta no museu do Instituto Municipal Nise da Silveira, na zona norte do Rio, remanescente do primeiro manicômio do país - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Um dos tratamentos que talvez seja atrelado ao maior desses estigmas é a eletroconvulsoterapia, evolução do "eletrochoque", já usado como instrumento de tortura ou punição por manicômios e ditaduras e retratado sempre de maneira brutal nos filmes.

"A gente tinha aquela ideia de ‘Um Estranho no Ninho’ [longa estrelado por Jack Nicholson], aquela violência, mas é completamente diferente", afirma o advogado Marco Aurélio Cunha, 51, que em 2019 viu seu pai ressurgir de um estado de catatonia após o procedimento.

O quadro depressivo de Luiz Henrique se aprofundou a tal ponto que o juiz aposentado parou de se alimentar. Estava só "pele e osso" quando chegou à consulta com o neuropsiquiatra José Gallucci, diretor da ECT no Instituto de Psiquiatria da USP (IPQ). Saiu de lá tendo debates filosóficos de horas com o médico.

A unidade é referência no tratamento, que deve ser sempre consentido e indicado para casos específicos: pacientes com depressão ou esquizofrenia graves, que não responderam a medicamentos e outras alternativas.

O método consiste em posicionar dois eletrodos na cabeça e aplicar um estímulo elétrico de alguns segundos que gera uma convulsão no cérebro. Só é feito com a pessoa anestesiada, monitorada e sob a ação de um relaxante muscular.

Os possíveis efeitos colaterais incluem confusão mental e perda da memória recente (não lembra do procedimento, por exemplo) ou biográfica (esquece coisas do passado), normalmente passageiras. No caso de Luiz Henrique, os esquecimentos duraram um mês, relata o filho.

A depressão voltou após um ano, porém parte da família se opôs a novas sessões recomendadas pelo médico. O juiz aposentado depois decidiu parar todos os outros tratamentos e morreu em abril de falência renal, sem comer. "Tenho certeza de que ele viveu esses três anos a mais pela ECT, e com uma qualidade de vida boa", diz Marco.

Marco Aurélio Cunha, 51, diz que a eletroconvulsoterapia (ECT) salvou a vida do seu pai em 2019 - Gabriela Biló/Folhapress

O debate sobre o assunto hoje gira principalmente em torno da inclusão ou não do procedimento no SUS. De um lado, defende-se que o rico tem acesso, enquanto o pobre morre. "Existe um discurso de que há uma superutilização da ECT no Brasil, mas não é verdade. O IPQ é uma ilha e está ficando pequeno para a demanda", afirma Gallucci.

De outro, argumenta-se que expandi-lo não é prioridade e criaria um risco de mau uso. "Não é questão de ser contra ou a favor, estamos falando de gestão. É uma incongruência defender uma estratégia tão restrita e cara em detrimento do resto da rede", diz a psiquiatra Ana Paula Guljor, pesquisadora da Fiocruz e presidente da Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental).

Outra discussão que ganha corpo é sobre os remédios. Se ir ao psiquiatra e tomar psicotrópicos ainda é visto por muitos como "coisa de louco", o que impede a busca do tratamento por quem precisa, contraditoriamente uma grande parte dos brasileiros os ingere incorretamente.

Cerca de 9% da população disse já ter usado ansiolíticos, sedativos, hipnóticos e outras substâncias sem receita, segundo pesquisa de 2015 da Fiocruz. "A automedicação é um câncer", afirma Antônio Geraldo, da ABP, criticando também a prescrição por médicos não especialistas.

Entre as 16 milhões de pessoas que afirmavam ter um diagnóstico de depressão em 2019, quase metade tomava medicamentos (48%), mas só um quinto fazia algum tipo de psicoterapia (19%), de acordo com dados do IBGE.

A desigualdade também conta nesse ponto: os brasileiros com renda mensal acima de cinco salários mínimos têm muito mais acesso a terapias (29%) e remédios (54%) do que o outro extremo, que ganha até um quarto do mínimo (17% e 41%). A variedade na Farmácia Popular é escassa, e não é incomum que eles faltem, dizem os psiquiatras.

"Não é só tomar remédio, claro, mas tem casos em que sem o remédio fica muito difícil", ressalta Jorge, da Unifesp. "Bem medicada e assessorada, a pessoa tem uma vida longa e de qualidade."

Seringas e ampolas de medicação antigas expostas no museu do Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio - Eduardo Anizelli/Folhapress

Uma terceira polêmica que esbarra nos estigmas da doença mental são as internações psiquiátricas compulsórias, determinadas por um juiz. Elas são diferentes das involuntárias, feitas a pedido de terceiros como profissionais de saúde ou parentes.

Essas são mais comuns e têm que ser comunicadas ao Ministério Público em até 72 horas. Houve 11,9 por dia só na cidade de São Paulo neste ano (2.507 no total). Já as compulsórias tiveram 3,4 pedidos por dia à Justiça em todo o estado (718), sem ser possível saber quantas foram aceitas ou não.

São um termômetro da carência de serviços e investimentos neles. Quanto mais fortalecida a rede de saúde mental, menos compulsórias vai ter, avalia o psicólogo Eduardo Gomes, que coordenou a área em duas cidades no Rio de Janeiro e hoje chefia o Caps 3 (Centro de Atenção Psicossocial) da Rocinha.

A lei nacional que as institui, de 2001, diz que a decisão da Justiça precisa seguir um laudo médico. Na prática, porém, ela acaba dependendo de uma visão pessoal do magistrado, comovido com o desespero das famílias, como mostrou uma pesquisa feita pela juíza Isabel Pinto Coelho nos casos de usuários de crack no Rio em 2018, pela Fiocruz.

"As internações compulsórias de que tratei eram contraindicadas pelo médico, geralmente a pedido da família ou da comunidade do entorno, ou o juiz recebeu apenas o laudo do diagnóstico", diz Eduardo.

Outro problema é que, nesses casos, a alta também fica nas mãos do juiz e depende do tempo do processo, o que pode estender a internação, além de não haver um acompanhamento efetivo que de fato faça o paciente melhorar, segundo o psicólogo.

Para ele, a solução passa por desmistificar o sofrimento psíquico nos arredores dos Caps, por exemplo. "Quanto mais longe está a loucura, mais medo ela gera."

Jorge Assis defende também campanhas de combate ao estigma, com esportistas e artistas ligados à causa. Ele aprendeu a fazer isso com a própria experiência: "Não é que vamos invadir a plataforma de petróleo como o Greenpeace, é algo que temos que fazer dia a dia", diz.

COMO COMBATER O ESTIGMA?

Abre (Associação Brasileira de Esquizofrenia)
Informa e luta pelos direitos das pessoas com esquizofrenia: www.abrebrasil.org.br

Abrata (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos)
Informa e apoia pessoas com depressão e/ou transtorno bipolar, familiares e amigos: www.abrata.org.br

ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria)
Promove campanha contra o preconceito: www.psicofobia.com.br

O QUE É A SÉRIE BRASIL NO DIVÃ

Depressão, ansiedade, burnout, esquizofrenia, suicídio: a explosão dos transtornos mentais foi debatida durante mais de dois anos de pandemia, mas pouco se aprofundou sobre o nosso sistema público de saúde mental, que passa por uma grande reforma psiquiátrica há mais de 20 anos. A série Brasil no Divã discute o tamanho do problema, a capacidade do SUS, o fim dos manicômios, mitos e preconceitos que rodeiam o assunto e as saídas possíveis.

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