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Descrição de chapéu Futebol americano

Coalizão Negra luta contra racismo no futebol americano do Brasil

Atletas planejam relatório de casos e aulas de história para entender raiz do problema

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São Paulo

Entre os casos João Pedro e George Floyd, ficou mais uma vez claro que o racismo não é exclusividade norte-americana ou brasileira. Também já não é exclusividade dos atletas dos Estados Unidos a luta contra a discriminação racial no ambiente do futebol americano.

Praticantes e entusiastas do esporte no Brasil formaram a Coalizão Negra FABR (sigla para futebol americano no Brasil), um grupo disposto a ir “além das hashtags” no combate ao racismo, como prega seu manifesto. A associação propõe ações práticas, que não se restrinjam a mensagens publicadas em redes sociais.

Criado em junho, o movimento hoje tem 70 membros, entre jogadores, treinadores, diretores e jornalistas, não apenas negros. As medidas programadas por enquanto incluem um relatório de casos de discriminação nas partidas e aulas de história “para quem tem realmente o intuito de ser antirracista e não sabe por onde começar”.

“Já temos a visão e a missão da Coalizão Negra FABR”, diz o nose tackle Caião Pereira, 31, um dos líderes do grupo. “A gente tem que entrar na estrutura do esporte. Não adianta fazer um monte de ‘hashtag’ e esquecer tudo uma semana depois. Não sou contra uma faixa ‘racismo, aqui não’ ou ‘vidas negras importam’, mas uma publicação ou um cartaz não vai mudar muita coisa.”

A ideia partiu de Lucyen Costa, 24, empresário e estudante de direito. Identificado com a luta de Colin Kaepernick –que se tornou um ícone na denúncia do racismo e da brutalidade policial contra os negros nos Estados Unidos a ponto de ter sido boicotado da NFL, a liga de futebol americano original–, ele resolveu abraçar a pauta no FABR.

Administrador da popular e irreverente página NFL da Zueira, que hoje conta com quase 100 mil seguidores no Instagram, Costa procurou Marcelo Carvalho, 46, para falar com seriedade. O estudante pediu ajuda ao criador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e ouviu orientações do ativista.

Dali surgiu uma parceria com o Observatório, que produz respeitados relatórios anuais sobre casos de racismo e injúria racial no futebol da bola redonda desde 2014. Agora, com a ajuda da Coalizão, o documento vai incluir os casos registrados no futebol americano do Brasil.

Logotipo da Coalizão Negra FABR tem um atleta ajoelhado, gesto do jogador norte-americano Colin Kaepernick que virou símbolo de resistência contra o racismo - Divulgação

Isso não poderá ser posto em prática imediatamente porque as competições foram suspensas pela pandemia do novo coronavírus, com previsão de retorno apenas em 2021. Mas, quando a bola oval voltar a girar, a associação quer os atletas negros à vontade para denunciar ofensas e agressões.

“A ideia é ter a presença da Coalizão em jogos em diversos estados. Quando ocorre um caso, a vítima tem que saber que tem com quem contar, que tem o que fazer”, afirma Lucyen, que está preparando um material distinguindo o racismo da injúria para distribuir aos jogadores.

De acordo com o empresário e com os atletas, os registros não são numerosos nas partidas disputadas no Brasil. As ofensas ocorrem, mas são geralmente abafadas em um esporte que, no país, ainda é elitizado e largamente amador.

“Poucos atletas denunciam. Por ser um esporte elitizado, você percebe na estrutura a questão do racismo. De 32 times na primeira divisão do campeonato, temos um treinador negro. Você não vê presidente de liga negro, diretor de federação negro. Em todos esses anos jogando, nunca vi um árbitro negro”, observa Caião.

Exceção feita aos atletas norte-americanos, os negros também são raridade entre os quarterbacks, aqueles responsáveis pelos passes e tidos como cérebros das equipes.

“A gente precisa de treinadores negros, cabeças pensantes. Mas, não, o negro não serve para ser cabeça pensante. Ele pode ser rápido, ele é forte, vai jogar como running back, como defensive lineman. Com quarterback, que é cabeça pensante, já existe um pé atrás”, observa o paulistano, nose tackle do Gaspar Black Hawks e da seleção brasileira.

Por mais cabeças pensantes, a Coalizão decidiu preparar aulas de história dirigidas aos atletas. O grupo conta com membros com conhecimento teórico, como Matheus Borges, 25, cornerback do João Pessoa Espectros, que é formado em filosofia e está disposto a dar sua contribuição.

“A aula de história parte de um interesse de entender como se deu a escravidão e as consequências dela. É entendendo as raízes africanas do Brasil que a gente vai entender como as estruturas de poder se estabeleceram e se perpetuam até hoje. A escravidão, com toda a sua carga ideológica, cultural e filosófica, deixou consequências e um legado”, diz Borges.

O formato das aulas ainda está sendo definido, mas a ideia é que não seja algo maçante. “Nossa abordagem sai um pouco do âmbito formal. O que a gente quer é a conscientização do negro, do brasileiro, e a gente quer buscar isso com debates, leituras, recomendações de filmes e seriados”, explica Borges.

A repercussão ao movimento no meio do FABR tem sido positiva, mas há quem torça o nariz. A página de Lucyen Costa, NFL da Zueira, vem sendo chamada pelos descontentes de “NFL da Lacração”, palavra usada de maneira pejorativa por aqueles que não gostam de ver conteúdo progressista nas redes sociais.

“Sempre aparece alguém: ‘Ai, deixa disso, esquerdista, estou aqui para ver futebol americano’. Mas a gente sabe qual é o objetivo: calar. O que essa galera quer é calar. Não querem ver. Querem viver em um mundo de fantasia em que não existe racismo. Então, quando alguém fala sobre racismo, tentam atacar, ofender, minimizar, deslegitimar”, analisa Lucyen.

O grupo não parece disposto a acatar os pedidos de silêncio. O ímpeto deixou animado Marcelo Carvalho, que já está na luta há tempo suficiente para moderar bastante o otimismo. Há um fator específico, no entanto, que alimenta a sua fé no trabalho da Coalizão Negra FABR.

“Tenho uma pequena esperança de o debate se prolongar um pouco mais justamente a partir do nascimento da Coalizão, porque ela está partindo dos atletas. O posicionamento do Caião é fundamental. Ele está conseguindo aglomerar atletas negros e até não negros, vai fazer com que esse debate de fato aconteça quando o futebol americano voltar”, diz Carvalho.

Para o fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que aponta um movimento de natureza semelhante gestado entre praticantes do MMA, a ideia partir de quem está no campo –ou no octógono– faz toda a diferença. “Com os atletas se manifestando, tem uma quebra de silenciamento.”

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