'O Gosto da Própria Carne' distorce a crueza da violência
Roberto Lage se reencontra com a premiada obra de Albert Innaurato depois de montá-la em 1985
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Roberto Lage se reencontra com "O Gosto da Própria Carne", premiada obra do americano Albert Innaurato, três décadas depois de montá-la em 1985.
Benno, o personagem central, interpretado por Roberson Lima, é um jovem obeso que sofre com a violência, dentro e fora de casa.
Desumanizado, acaba tomado por instintos primitivos: come desenfreadamente, além de, a partir disso, desenvolver uma relação ambígua com a sexualidade.
O texto apresenta figuras disformes ao redor do protagonista. Escolhas cênicas —como os dois planos propostos na cenografia de Sylvia Moreira e a quase imobilidade de Lima— sugerem não só uma temporalidade vinculada às memórias de Benno, mas também que os outros podem se tratar de projeções.
Tal possibilidade justificaria a diferença na interpretação dos atores e atrizes. Lima é o único intérprete que trabalha com nuances —algo de certo modo facilitado pelo texto, visto que se dirige à plateia e conduz a narrativa.
Há uma intenção nítida de gerar náuseas no público: a relação com a comida é levada concretamente à cena. Benno come sem parar e, às vezes, baba e cospe.
Na direção de Lage, Lima se destaca pelo engajamento tanto nas ações quanto na articulação de textos que vão do mais cotidiano até metáforas elaboradas.
A escolha de manter Benno sempre no plano baixo, do lixo, é um bom achado da encenação —ainda que por vezes seja difícil acompanhar ações simultâneas.
Com a distância, suas reações, inadequadas e gatilhos para a frequente culpabilização do jovem, se destacam.
No entanto a proposta do diretor de levar ao palco a crueza não surte efeito no que tange o resto do elenco.
A ampliação, expressa em interpretações estereotipadas, acaba não apenas sublinhando o texto mas também distorcendo a representação.
Sobram a violência e o desagradável —o que, vale ressaltar, se encaixa na proposta da encenação.
Porém cabe refletir a respeito de onde se quer chegar em termos de eficácia.
"O Gosto da Própria Carne" parece ficar no meio do caminho entre aproximação e distanciamento --o primeiro, visaria a identificação da plateia com o real; o segundo, a reflexão crítica.
Ao mesmo tempo que o tom único dado aos algozes de Benno pode tirar deles a verossimilhança, o discurso de sua jovem colega soa perigoso. A personagem, de 13 anos, sofre abusos do avô do protagonista, mas parece se divertir e tirar proveito disso.
Nada distante da lógica cruel proposta pelo texto. A garota, inclusive, resolve a própria situação, mas não há redenções no espetáculo.
Ainda que a obra clame contra a censura e padrões moralistas, é fundamental refletir acerca da lida com certos comportamentos levados à cena. Não se trata de evitar temas tabus, mas enfrentá-los de maneira responsável.