Combinando humor e horror, 'Relatos Selvagens' desconstrói sonho iluminista

Em seis esquetes, filme retrata fragilidade dos laços sociais e propensão do homem à violência

Cena de um dos segmentos do filme argentino "Relatos Selvagens", com os atores e Diego Gentile e Erica Rivas - Divulgação

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Philippe Scerb
São Paulo

​A ideia de que a razão nos livra da selvageria se contrapõe à tendência moderna de colocar no outro, no inimigo, a origem de todo o nosso mal-estar. “Embarcamos no sonho iluminista de que evoluiríamos constantemente. Não é verdade. Os instrumentos evoluíram, mas não os homens e suas relações”, afirma a psicanalista Dora Tognolli.

O prólogo do filme argentino "Relatos Selvagens", de Damián Szifron, seria expressão perfeita disso. Ele retrata, de forma cômica e trágica, a vontade de uma pessoa de matar a si própria e todas aquelas envolvidas em suas frustrações passadas. "Quantas vezes não queremos acabar com todo mundo e dizer ‘vocês são os responsáveis pelo meu fracasso'?”, indagou Tognolli.

A psicanalista participou, ao lado da jornalista da Folha Úrsula Passos, do debate que se seguiu à sessão do filme, na última quarta-feira (7), na Cinemateca Brasileira. O evento marcou o encerramento do quarto módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Cinemateca, com o apoio da Folha.

Os seis esquetes que compõem o filme retratam, de maneiras distintas, mas sempre permeados pelo humor, a fragilidade dos laços sociais e a propensão do ser humano para recorrer à violência. “Quando o pacto não se sustenta, vem a selvageria e impõe-se a lei do mais forte, algo comum em lugares como o Brasil”, afirmou a psicanalista Luciana Saddi, responsável pela mediação do debate.

Tognolli concorda. Segundo ela, o ambiente externo pode agravar a comum insatisfação provocada pelo fato de as coisas não se passarem de acordo com os nossos desejos. “O mal-estar não vem só de dentro, mas também de fora. Pactos frágeis e a falta de confiança nas instituições ampliam o risco de soluções isoladas, selvagens."

Fenômenos como a corrupção estatal e a desigualdade social são retratados no filme como motivos de gestos bárbaros e aparentemente impensados. Algo um tanto evidente em diálogos como aquele em que uma das personagens afirma que a cadeia não é tão ruim e “a sociedade é uma merda”.

O papel do filme, na opinião de Tognolli, é justamente provocar, e não pacificar. Daí o exagero das performances, que se apoiam na exposição do corpo e esbarram no grotesco. “É natural que o filme produza reações diferentes, pois deixa a pergunta: será que somos assim?”

Úrsula Passos afirmou não gostar do filme, embora reconheça que ele é bem-sucedido no que se propõe a fazer. “Para quem trabalha com crítica ou repercussão pública, é importante distinguir a opinião pessoal do sucesso da obra.”

Seu incômodo decorre exatamente da tentativa do longa de provocar identificação do espectador com ações abertamente selvagens. “Em várias cenas eu me peguei perguntando se seria capaz daquilo. Chego à conclusão de que não e me sinto covarde.”

A jornalista confessou que fechou os olhos em determinados momentos. “Talvez até os risos sejam expressão do incômodo”, afirmou.

Segundo Saddi, a escolha dessa comédia para encerrar o módulo se deve à crítica aguda que ela dirige à sociedade contemporânea e à qualidade de mostrar que ainda somos capazes de rir de nós mesmos, diferentemente dos animais.

O filme, porém, escaparia do selvagem ao levar atos bárbaros, o não dito, a outro plano de elaboração —o que ele faz por meio de relatos, cujo sentido é explicitado no nome do longa, na opinião de Tognolli.

“Esse é o papel do encontro, do fruir, como fazemos ao debatê-lo aqui”, disse a psicanalista, antes de citar Mário Pedrosa. “Em tempos de crise, fique ao lado dos artistas.”

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