Primeira feira de arte de Paris no rastro do MeToo vende a fúria feminina

Mulheres com obras de teor mais ativista, como Mona Hatoum e Barbara Kruger, dominaram a Fiac

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Silas Martí
Paris

Debaixo dos domos de vidro do Grand Palais, um letreiro de néon amarelo faiscante abraça um pilar com uma pergunta. A obra da artista israelense Yael Bartana quer saber como seria um mundo dominado pelas mulheres.

Nos corredores ao redor, trabalhos à venda em quase todas as grandes galerias juntas na Fiac, a feira de arte parisiense realizada no mês passado, ensaiavam suas respostas. 

Um dos maiores termômetros do mercado da arte no mundo, essa primeira edição do evento depois do estouro do movimento MeToo —e já na ressaca da prisão de poderosos como o produtor hollywoodiano Harvey Weinstein, acusado de assédio sexual contra uma série de atrizes— tentou pôr à prova o valor do ativismo feminino nas artes.

O trabalho de Bartana, levado à feira pela galeria Raffaella Cortese, de Milão, já era um desdobramento mais vendável de outro projeto, um filme em que a artista juntou atrizes e líderes mulheres de verdade numa espécie de reunião de cúpula minutos antes de um apocalipse vindouro.

Mas, desde que o vídeo estreou em abril deste ano em Berlim, a temperatura só aumentou. E o interesse do mercado por trabalhos dessas artistas donas de um ativismo sangue nos olhos, também.

Entre as peças mais agressivas e chamativas da Fiac, estavam esculturas, desenhos, pinturas e fotografias de nomes que há muito já cavaram um espaço de peso na história da arte contemporânea, mas que nesses tempos ganham verniz de altíssima voltagem.

Sarah Lucas, artista britânica agora também com obras na Bienal de São Paulo, apareceu em alguns estandes com suas peças marcadas por um erotismo iconoclasta —uma forma fálica de gesso a escalar uma cadeira, na Gladstone, de Nova York, e um manequim metálico feito com fios e cabides, lâmpadas no lugar dos seios e uma luz vermelha dentro de um balde como vulva, na Sadie Coles, de Londres.

 

Desde que despontou como uma das raras mulheres entre os chamados Young British Artists na década de 1990, Lucas vem desconstruindo noções de sexualidade com ironia cáustica. Suas obras aliam gestos despudorados a uma linguagem de rigor sintético apelativo, formas de gesso, espuma e metal que remetem a seios, pênis eretos e vaginas.

Tracey Emin, outra artista do mesmo movimento que chacoalhou a capital britânica, também mostrou na Fiac algumas pinturas de sua vertente mais rebelde e autobiográfica, em que narra em tons pastel, rosas e brancos, até cenas de estupro e aborto.

Numa quase abstração levada à feira pela Xavier Hufkens, de Bruxelas, Emin pinta um turbilhão de linhas que esboçam o que seria uma mulher violentada, o sexo à mostra.

O órgão sexual feminino, em representações mais explícitas ou só metafóricas, aliás, parecia estar por toda parte, sinal de que a luta política também se ancora na libertação sem freios do desejo das mulheres.
 

Betty Tompkins, uma artista americana redescoberta no início do século por suas pinturas derivadas de imagens pornográficas realizadas nas décadas de 1960 e 1970, ocupava uma parede inteira da galeria Rodolphe Janssens, de Bruxelas, com uma série de imagens em preto e branco e em plano fechadíssimo de mulheres se masturbando.

São telas de contornos acinzentados e esmaecidos, como fotogramas de filmes de sexo explícito transformados em obra de arte só pela ação do tempo sobre o celuloide.

Mas enquanto as texturas de Tompkins —e os dedos de suas mulheres— sugerem carícias, as unhas vermelhas e afiadas da mão de uma mulher segurando um facão, escultura da queniana Wangechi Mutu, também na nova-iorquina Gladstone, respondem pela ala mais brutal da feira.

Mutu, uma das mais novas queridinhas do circuito atual, com passagem por bienais badaladas e individuais em instituições de peso, como o Museu do Brooklyn, vem tornando mais explícitas em sua obra as alusões à violência, em especial o legado do machismo e das relações coloniais.

Na mesma pegada, a libanesa Mona Hatoum, que já foi alvo de uma retrospectiva na Estação Pinacoteca, em São Paulo, funde noções de tensão e delicadeza numa série de pequenas granadas de cerâmica.

Seus objetos diminutos, à venda na nova-iorquina David Zwirner, são bibelôs às avessas, a memória da guerra que estraçalhou —e ainda estraçalha o seu país— como singelas relíquias ainda capazes de mandar tudo pelos ares.

Essa violência latente se torna escancarada numa enorme tela de Barbara Kruger, no estande da Sprüth Magers, de Berlim. Nela está a imagem de uma agulha a ponto de furar um olho junto de uma frase sobre culpa e vergonha.

Sempre em letras enormes sobre imagens em preto e branco, as frases dessa artista conceitual há muito tentam desancar abusos de sistemas políticos e econômicos, em especial os de seu país, os Estados Unidos agora sob Trump.

Toda a fúria dessas mulheres, é claro, acaba neutralizada pelo bazar de commodities que é toda feira de arte, mas não deixa de ser um sinal dos tempos que colecionadores prefiram levar para casa essas peças menos decorativas e mais carregadas de tensão.

“Sempre existiram trabalhos nessa linha”, diz Jennifer Flay, diretora da Fiac. “Colecionadores de verdade se sentem atraídos por essas obras que falam de nossa sociedade.” 

Menos furiosas, mas não menos políticas, obras de brasileiras, entre elas Lygia Clark, Lygia Pape, Judith Lauand e Mira Schendel, todas levadas ao evento pela paulistana Bergamin & Gomide, poderiam se encaixar nessa leva. Valendo milhões de dólares, expressam outro lado da força das mulheres nesse mercado.
O jornalista viajou a convite da Fiac. 

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