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Escritores brasileiros revisitam personagens e insurreições negras

Autores escrevem sobre o período da escravidão e ajudam a formar reflexões antirracistas

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Guilherme Henrique
São Paulo

Importante estudo sobre a branquitude e o anticolonialismo, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, do filósofo e psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961), foi publicado no início da década de 1950. Em uma de suas reflexões, o teórico afirma que “diante do branco, o negro tem um passado a valorizar e uma revanche a encaminhar.”

Valorizar o passado, como preconizou Fanon, e compor novas narrativas a partir do que caiu no esquecimento integram um movimento crescente do mercado editorial brasileiro, interessado em revisitar personagens e insurreições negras do século 19, no período pré-abolição.

“O mercado editorial, após sua mais grave crise, passa por uma série de reavaliações”, diz o escritor Tom Farias, autor de “José do Patrocínio - A Pena da Abolição”, publicado pela editora Kapulana. “A mais importante delas tem a ver com a questão dos chamados nichos de mercado. Obviamente que a necessidade de ampliar as dimensões de atuação fez-se urgentemente necessária”, completa.

Cartaz do filme documentário "Frantz Fanon: Pele Negra, Máscara Branca", do diretor britânico Isaac Julien. - Reprodução

Em sua obra, Farias narra a trajetória do jornalista e um dos principais nomes do abolicionismo no Brasil desde o nascimento, em novembro de 1853, no Rio de Janeiro, fruto do envolvimento entre o vigário João Carlos Monteiro e a negra escravizada Justina Maria do Espírito Santos, até sua morte em 1895, com severas dificuldades financeiras, vivendo em uma casa simples.

O livro resgata os embates na imprensa durante a campanha antiescravagista, o envolvimento na direção de jornais e o relacionamento com outros nomes igualmente importantes do período, como o advogado André Rebouças. 

“A história de José do Patrocínio ainda está pouco contada, assim como de Maria Firmina dos Reis, Carlos Gomes, Rosa Maria Egipcíaca e Manoel Congo, uma espécie de Zumbi dos Palmares do Rio de Janeiro”, diz o autor.

Segundo a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, é preciso mudar a imaginação dos brasileiros, tornando-a mais múltipla, com outros heróis e protagonistas. “Mais da metade da população é negra ou parda. Como nós temos uma população tão ampla, com uma historiografia que não lida com esse passado e presente?”, questiona.

Transitar pelas histórias do passado significa caminhar por veredas por vezes nebulosas. A memória é seletiva e a oralidade carrega uma narrativa que o papel não dá conta. No caso de Patrocínio, existem dúvidas sobre seu nome de batismo —teria incorporado Patrocínio em decorrência de uma festa religiosa— e o verdadeiro local de nascimento, se a casa do vigário João Carlos ou a Santa Casa de Misericórdia.

Outro exemplo, mais complexo, é o de Luiza Mahin, tema do romance escrito pelo jornalista Armando Avena e publicado pela Geração Editorial. Entrelaçando ficção e realidade, a obra tem como pano de fundo a Revolta dos Malês, ocorrida em 1835, na Bahia, orquestrada por africanos de origem muçulmana.

As versões acerca de Mahin são múltiplas. Para alguns historiadores, não há base documental que confirme sua existência. Na obra escrita por Avena, a escrava liberta comanda uma quitanda de frutas, não aceita ser mulher de nenhum homem e é responsável por liderar o exército de mais de mil negros que tentaram tomar Salvador.

“A Revolta dos Malês é quase sempre narrada sem a presença de Luiza”, diz Armando. Ele admite que sua versão romanceada contém certa licença poética, mas reitera a importância de contar a vida da personagem.

“Uma pessoa que está no imaginário da população, na oralidade do povo, que é descrita como uma princesa, líder de uma revolta que desejava não só a libertação dos escravos, mas também da mulher, precisa ter a história contada mesmo que em romance.”

Para Schwarcz, não importa, neste momento, discutir se Luiza Mahin de fato existiu e qual foi sua real contribuição na insurreição. “Essa personagem está envolta em lendas, mas corporifica o lugar de uma mulher, protagonista, algo que é constantemente silenciado.”

Também na Bahia, a história da primeira greve que se tem notícia no Brasil é o mote do livro do historiador João José Reis.

Em “Ganhadores” (Companhia das Letras) Reis descreve o panorama de Salvador em 1857, quando um movimento pacífico de trabalhadores de rua —sobretudo carregadores de fardo e cadeiras de arruar—, a maioria africanos libertos e escravos, realizaram uma greve contra três medidas: a lei municipal que os obrigava a se matricularem junto à Câmara Municipal da capital baiana, o pagamento de um imposto anual e a utilização de uma placa de metal pendurada ao pescoço.

“A paralisação se estendeu por dez dias e atingiu um setor vital da economia urbana. Em 1857, os ombros dos negros carregavam a cidade, e Salvador simplesmente parou sem negros pra carregar brancos nas cadeirinhas e todo tipo de mercadoria, inclusive alimentos para abastecer a população”, comenta Reis.

Segundo o autor, o interesse pela história do negro cresce em marcha mais lenta do que seria preciso “para educar a população sobre como chegamos ao ponto em que estamos em termos de desigualdade racial, racismo institucional e individual, e de intolerância.”

Com lançamento previsto para abril deste ano, pela Edições Sesc, “Lições de Resistência - Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (1864-1882)”, será mais um livro que se propõe a mostrar o Brasil e a sociedade pré-abolição.

O trabalho da pesquisadora Lígia Ferreira, professora da Unifesp, analisa os textos jornalísticos do abolicionista, advogado e escritor Luiz Gama, que completaria 190 anos em 2020. 

“Ele descortina o país, interpretando a mentalidade brasileira sobre o relacionamento com o negro. Luiz Gama foi o nosso Martin Luther King, mas cem anos antes. Se ele fosse americano, Steven Spielberg já teria feito um filme sobre a sua história. Olhamos os teóricos e personagens do exterior, mas não estudamos nossos pensadores”, critica.

A professora também salienta a importância de Gama para o feminismo negro, já que o escritor é tido como filho de Luiza Mahin. “A figura de Luiza nasce em um texto dele. Ele diz que ela era uma mulher africana, implicada em revoltas na Bahia, sem citar a Revolta dos Malês. Costumo dizer que Luiz Gama é um filho que dá à luz a sua mãe”.

O feminismo negro, aliás, é apontado por Schwarcz como um dos fatores para que editoras demonstrem maior interesse no assunto. A historiadora espera que, como consequência, as relações raciais do país comecem a mudar.

“Nós não vamos ter uma democracia se continuarmos a ser um país tão racista. E o racismo se insere como linguagem, narrativa, de maneira silenciosa. Ele habita esses lugares que nós consideramos da natureza, mas que na verdade são escolhas do homem”, completa.

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