Siga a folha

Por que Trump ainda usa músicas sem autorização e à revelia dos artistas

Neil Young processou o presidente e músicos usam nova tática para que políticos não usem suas composições sem permissão

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Ben Sisario
The New York Times

No dia da eleição de 2018, Neil Young publicou uma mensagem reclamando do presidente Trump.
Três anos antes, Trump havia usado “Rockin’ in the Free World”, uma canção de Young em protesto contra a injustiça, ao anunciar sua campanha, o que despertou a ira do músico.

Em meio à campanha muito polarizada para a eleição de 2018, Young voltou a se queixar, mas afirmou que não havia como contestar o uso da canção legalmente. “Legalmente, ele tem direito”, escreveu Young em seu site. “Mas isso contraria minha vontade.”

Em agosto, Young enfim decidiu processar Trump pelo uso de “Rockin’ in the Free World” e outra canção, “Devil’s Sidewalk”, que foram tocadas no comício de Trump em Tulsa, no estado de Oklahoma, em junho. No processo, o músico acusou a direção da campanha de Trump de violação de direitos autorais por tocar as faixas sem licença e solicitou que a organização de campanha seja proibida de usar as cançoes e que pague indenização pelo uso indevido.

A queixa de Young afirmava que “a consciência dele não pode permitir que sua música seja usada como tema de uma campanha divisiva e antiamericana que promove a ignorância e o ódio”.

O que mudou nos últimos anos, dizem especialistas em propriedade intelectual, foi o surgimento de uma nova estratégia entre os músicos para impedir que candidatos políticos usem suas composições sem permissão, ainda que a legalidade dessa abordagem esteja em questão.

Músicos e compositores vêm se queixando há anos de que políticos toquem suas canções em eventos públicos, como comícios de campanha. A adoção de seu trabalho por um político pode insinuar que eles aprovam a figura política, ou distorcer o significado da letra, como quando Ronald Reagan elogiou Bruce Springsteen em um discurso em sua campanha de 1984, depois que um colunista conservador interpretou erroneamente a letra da sombria “Born in the USA”.

Na era de Trump, esses conflitos só se intensificaram, e o presidente foi criticado por uma ampla gama de músicos pelo uso de seus trabalhos —entre os quais Rihanna, Elton John, Pharrell Williams, Axl Rose, Adele, R.E.M. e os espólios de Tom Petty e Prince—, ainda que Trump em muitos casos tenha respondido de modo desafiador às queixas.

“Acho que ele está erguendo o dedo do meio para os artistas musicais e dizendo que eles não têm como o deter”, disse Lawrence Iser, um advogado que já trabalhou em diversos processos judiciais importantes quanto ao uso de canções protegidas por direitos autorais em campanhas políticas, entre os quais uma queixa de David Byrne contra Charlie Christ, então governador da Flórida, pelo uso de uma composição dele em 2010.

Mas os artistas em muitos casos não conseguiram bloquear o uso político de suas canções. A maioria das campanhas políticas conta com a mesma cobertura legal que uma estação de rádio ou casa de shows tem para a execução de uma canção —sob os acordos gerais de licenciamento com entidades como a Ascap e a BMI, que autorizam a execução pública de milhões de canções, em troca do pagamento de uma taxa.

Presidente Donald Trump fala em Casa Branca, em Washington, nos Estados Unidos, em 24 de julho de 2020 - Leah Millis/Reuters

A Ascap e a BMI chegam a oferecer licenças especiais para campanhas políticas, que permitem que elas usem determinadas canções onde quer que estejam sendo realizadas.

Segundo artistas como Young e os Rolling Stones —cuja canção “You Can’t Always Get What You Want”, de 1969, vem sendo usada como tema de encerramento em incontáveis comícios de Trump—, o fato de que sejam signatários desses acordos genéricos significa que eles não têm como recorrer à Justiça para bloquear o uso.

Mas, em junho, os Rolling Stones anunciaram que abririam um processo caso Trump voltasse a usar suas composições, e tanto a Ascap quanto a BMI anunciaram que, a pedido da banda, haviam retirado suas composições da lista de obras oferecidas para uso em campanhas políticas.

As regras para uso de uma canção em um filme ou comercial são mais claras –é necessária autorização direta do compositor ou da editora de música que o represente.

A Ascap e um advogado de Young afirmaram que “Rockin’ in the Free World” e “Devil’s Sidewalk” também foram retiradas da licença política da Ascap.

No entanto, ainda não está claro se essas retiradas são legais nos termos dos acordos regulatórios da Ascap e BMI com o governo federal, adotados décadas atrás a fim de impedir comportamento anticompetitivo.

Conhecidas como “organizações de direitos de execução”, a Ascap e a BMI funcionam como serviços centralizados de autorização para estações de rádio, serviços digitais de música ou mesmo shoppings que desejem executar canções protegidas por direitos autorais.

Os acordos das organizações com o Departamento da Justiça determinam regras severas para preservar a lisura do mercado, como a obrigação de oferecer seus catálogos de canções a qualquer parte interessada que esteja “em situação semelhante” e deseje utilizar sua música.

“Os artistas se veem diante de uma disputa judicial complicada para afirmar seu direito de impedir que políticos de quem discordam toquem sua música”, disse Christopher Buccafusco, professor da Escola Cardozo de Direito. “Eles podem ter algumas opções para fazer isso, por meio da retirada da licença política, mas essa ação tem validade legal dúbia.”

A Ascap e a BMI acreditam que seus acordos com o governo permitem que os compositores e editores de música que elas representam retirem material, sob determinadas condições, entre as quais há a possibilidade de que um determinado uso reduza o valor econômico da obra.

“A BMI não remove canções de sua licença em busca de pagamento mais alto ou por qualquer outra razão a não ser a de que os detentores dos direitos consideram que a associação de suas canções com uma campanha possa representar um endosso implícito ao candidato e com isso reduzir o valor da obra”, disse Stuart Rosen, vice-presidente jurídico da BMI.

Uma porta-voz da campanha de Trump não respondeu a um pedido de comentário.

O caso de Young está sendo acompanhado atentamente como teste do poder dos artistas para proteger suas obras contra uso político.

No mês passado, uma organização ativista, a Artists’ Rights Alliance, divulgou uma carta pública na qual exige que as campanhas obtenham consentimento dos artistas antes de usarem suas canções. A carta foi assinada por Mick Jagger e Keith Richards, John Mellencamp, Lionel Richie, Sheryl Crow e dezenas de outros compositores.

Alguns artistas, como Steven Tyler, tiveram sucesso ao enviar cartas formais solicitando que suas obras não fossem executadas, mencionando seus direitos de imagem e publicidade, ainda que essa forma de objeção tampouco tenha sido testada judicialmente.

E, ainda que Trump tenha desistido oficialmente de usar certas canções, como “Dream On”, do Aerosmith, ele continua a reafirmar frequentemente seu direito a fazer uso delas.

O caso de Young também surge em um momento no qual o Departamento da Justiça está revisando seus acordos com a Ascap e BMI, que vêm sendo um campo de batalha setorial importante há anos.

Ainda que os compositores recebam royalties das organizações de direitos de execução, eles —e as editoras de música— muitas vezes argumentam que os regulamentos são antiquados e impõem limites demais em como suas obras são licenciadas.

Por outro lado, as redes de mídia eletrônica e serviços digitais dizem que os acordos com o governo são necessários para preservar um mercado liso e apontam para exemplos de violação dos termos dos acordos pelas organizações.

“O sistema de direitos autorais é falho; ele é incapaz de proteger os criadores”, disse Dina LaPolt, advogada que representa Tyler e outros compositores. “Parte disso se relaciona aos acordos com o governo.”

Com a pandemia impedindo a maioria dos comícios e muitos eventos nas convenções, é possível que a questão fique de lado pelo restante da campanha de 2020. Mas pode ser só questão de tempo para que ela volte a se acender, e artistas e advogados vêm acompanhando as decisões de Young e dos Rolling Stones em busca de orientação.

Buccafusco, especialista em questões de direitos autorais, disse que o melhor caminho para as queixas dos artistas pode não ser recorrer à lei, e diz que o uso de canções por políticos representa uma oportunidade para que os artistas articulem suas posições e esclareçam o mundo sobre suas mensagens.

“O melhor recurso deles é provavelmente algo que já usam há anos”, ele disse, “ou seja, se queixar publicamente e tentar causar vergonha aos políticos, o que muitas vezes resulta em vitória para os compositores”.

Tradução de Paulo Migliacci

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas