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Renan Quinalha

Lucas sai maior do BBB 21 ao rejeitar o espetáculo baseado na desumanização

Dizer um basta para preservar a própria humanidade não é ato de fraqueza, mas de monstruosa coragem

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Renan Quinalha

Coordenador do curso de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

O primeiro beijo entre dois homens, Lucas e Gil, em um dos programas de maior audiência da televisão brasileira, o Big Brother Brasil da Rede Globo, deveria ser motivo apenas e tão somente de celebração. Depois de 20 edições e incontáveis beijos heterossexuais, finalmente dois LGBTs apareceram demonstrando afeto e carinho nas telas.

Não é preciso ser fã do programa para compreender a relevância de um acontecimento inédito dessa natureza. A visibilidade e a representatividade encerradas naquilo que seria um singelo beijo entre homens negros tornam-se ainda mais potentes considerando o recrudescimento do racismo e da LGBTfobia no país.

No entanto, o beijo acabou deixando um gosto amargo na boca. Após dias de incontáveis e flagrantes violências, Lucas anunciou sua saída antecipada da casa.

Lucas Penteado e Gilberto se beijam durante festa no BBB 21 - Globo

A socióloga Silvia Viana, em seu livro "Rituais de Sofrimento" (Boitempo), analisa como os reality shows se apresentam como mero entretenimento e jogo, mas, no fundo, escancaram e denunciam as entranhas de nossa própria sociedade.

Provas de tortura que forjam vencedores e sobreviventes estimulam uma lógica concorrencial que converte o outro em inimigo, não em adversário contingencial. Nada de novo se considerarmos os valores que embalam a subjetividade neoliberal e o estado precário do mundo do trabalho.

Assim, a realidade, convertida em espetáculo 24 horas por dia, é pensada para alimentar rivalidades, embates e complôs, tudo para deleite e engajamento do público que assiste, torce e vota. A produção do programa se desresponsabiliza pela condução, delegando aos participantes o papel de algozes de si mesmos.

Mas tudo soa mais grave quando, na edição mais marcada pela diversidade, a humilhação e o preconceito vêm de pessoas que pertencem ao mesmo grupo vulnerável daquele a quem ofendem. Foram principalmente mulheres negras e LGBTs que, com o silêncio conivente dos demais, levaram Lucas ao seu limite.

Alguns são os ensinamentos que podemos e devemos tirar desse episódio.

Primeiro, o pertencimento a uma minoria não é credencial de desconstrução e tampouco tem por efeito automático a consciência e a empatia com meus pares. A construção da igualdade é um possível ponto de chegada das identidades, não de partida.

Dito isso, é importante frisar que as coisas devem ser chamadas pelo seu próprio nome. Eufemismos, em geral, só invisibilizam a gravidade. Não se trata de cancelamento ou lacração, mas de assédio moral. Interpelar a autenticidade da orientação sexual alheia não é uma opinião, mas sim bifobia.

Isso é ainda mais grave se considerarmos que a bissexualidade é a mais invisibilizada das práticas e identidades abrangidas pela sopa de letrinhas LGBT. Na maior parte das vezes, não tem seu reconhecimento assegurado nem mesmo dentro da própria comunidade. Frequentemente, pessoas bissexuais são questionadas em suas motivações: faltaria a elas coragem para assumir a homossexualidade; estariam apenas em fase de transição; seriam indecisas e confusas; ou, como foi dito sobre Lucas, não passaria de uma "performance" para chamar atenção.

As relações de opressão são estruturais e estruturantes. Isso significa dizer que a violência opera não como um desvio, um acidente de percurso ou uma intencionalidade perversa, mas como o princípio ordenador das desigualdades e que atravessa a todos. Como ensina a filósofa Judith Butler, os corpos que escapam à matriz da heterossexualidade compulsória deixam de ser inteligíveis e, destituídos de sua humanidade, tornam-se alvo privilegiado das agressões normalizadoras.

É preciso romper esse ciclo e assegurar o direito à livre manifestação e à autodeterminação da sexualidade. Prazer é direito em uma relação consensual entre adultos, respeito dos demais é dever. Isso sem falar no contrassenso de imaginar que assumir a bissexualidade seja uma estratégia para render mais apoio em um dos países que mais matam e deixam matar pessoas LGBTs no mundo.

Ainda que se trate de um jogo que opera nos limites da integridade psíquica das pessoas ali confinadas, a proteção da dignidade humana é dever a ser observado por todos. Não só pelo Estado, mas também pelos particulares. Há, neste caso, uma inegável dimensão ética, mas também jurídica. O tipo de constrangimento praticado, com ampla repercussão pública e provas abundantes, recomenda medidas de reparação.

Felizmente, a realidade é mais do que a casa do BBB. O acolhimento que Lucas não encontrou lá dentro, ele terá mais chance de encontrar aqui fora. Ele saiu maior ao rejeitar a lógica do espetáculo baseada na desumanização. Dizer um basta para preservar a própria humanidade não é ato de fraqueza, mas de monstruosa coragem.

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