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Nem tudo é sobre dinheiro

Definição de bem-estar material de eleitores de baixa renda vai além do que pressupõem análises que focam em políticas de transferência de renda

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Mariana Borges Martins da Silva | Latinoamérica21

Com a queda no índice de aprovação do governo Bolsonaro entre os mais ricos e o pequeno aumento de aprovação do governo entre os mais pobres no último Datafolha, muitos analistas correram para anunciar uma suposta transformação da base do que vem sendo chamado por alguns especialistas de “Bolsonarismo”. O auxílio emergencial, benefício financeiro criado para auxiliar os trabalhadores informais durante a pandemia, teria sido o grande responsável pela migração dos mais pobres para a base de Bolsonaro.

O debate criado em torno da relação entre o apoio dos eleitores de baixa renda ao governo Bolsonaro e o auxílio emergencial pode ser novo, mas ele reproduz uma velha leitura da academia, da imprensa, e do senso comum sobre o comportamento eleitoral dos mais pobres no Brasil. De acordo com essa visão, o apoio dos eleitores mais pobres é única e exclusivamente determinado pela política de transferência de renda da vez. Ao recorrerem a essa leitura sobre o comportamento eleitoral das pessoas de baixa renda, reforçando apenas a importância das políticas de transferência de renda do momento, a academia e a imprensa acabam, ainda que não intencionalmente, reproduzindo a visão do senso-comum de que os eleitores mais pobres trocam seu voto por dinheiro.

O problema de essa conversa girar apenas em torno de políticas de transferência de renda, porém, não é somente reproduzir preconceitos de classe e regionais, mas também simplificar o comportamento eleitoral de apenas uma camada da população. Ao construirmos modelos estatísticos que visam medir a influencia apenas do auxílio emergencial ou do Bolsa Família no comportamento eleitoral dos mais pobres, não consideramos que talvez esses eleitores pensem sobre seu voto em outros termos. Afinal: podemos afirmar categoricamente que tais políticas são, de fato, a única medida com que os eleitores de baixa renda medem o seu bem-estar material? Tem a pobreza um papel tão determinante a ponto de não possibilitar que os eleitores mais pobres pensem seu voto para além da questão da renda? Em outras palavras: são os eleitores mais pobres tão distintos assim dos eleitores de outras faixas de renda a ponto de seu comportamento político não ser também influenciado pelos outros temas que ocupam o debate nacional, como corrupção, segurança, saúde e educação?

Pesquisas de cunho qualitativo mostram que os eleitores de baixa renda definem seu bem-estar material de uma forma muito mais complexa do que pressupõem as análises que apenas focam em políticas de transferência de renda. Realizando minha pesquisa etnográfica sobre os eleitores de baixa renda em uma cidade do interior da Bahia, aprendi que os eleitores de baixa renda usavam um repertório de experiências pessoais, para avaliarem a performance do Governo Federal, o qual ia muito além do fato de serem ou não beneficiários do Bolsa Família. Era comum, entre esses eleitores, avaliar se um governo havia, em suas próprias palavras, “olhado para a pobreza”. E o Bolsa Família figurava apenas como um entre outros fatores que essas pessoas mobilizavam para justificar sua visão de que um governo havia ou não “olhado para a pobreza”.

Além do Bolsa Família, os eleitores de baixa renda citavam tanto políticas em que eles haviam sido diretamente beneficiados, como o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, quanto mencionavam outras políticas que afetavam indiretamente a sua realidade cotidiana, como comparações sobre seu poder de compra, acesso a bens de consumo, ou até mesmo sobre regularidade da merenda escolar em sua comunidade. Fica evidente que as ações de um governo tocam o cotidiano dos eleitores em diversas dimensões, e os de baixa renda usam uma miríade de vivências para avaliar o impacto de um governo em relação ao seu bem-estar material.

Ainda que as políticas de transferência de renda sejam importantes para os eleitores mais pobres, elas cobrem apenas uma dimensão de sua vida material. Nesse sentido, não é possível fazer a simplificação e afirmar que o auxílio-emergencial mudou a base bolsonarista.

Além disso, não se pode pressupor que esses eleitores, por sua carência material, votem apenas com o bolso. Limitar a conversa a isso, não apenas trata um grupo diverso de eleitores como um grupo homogêneo, mas também retira a possibilidade de que eles construam narrativas políticas que não passem por seu lugar de classe.

Em minha pesquisa de campo nas eleições de 2014, o discurso do desencanto, diante dos escândalos de corrupção, já marcava a narrativa política de determinados eleitores de baixa renda, levando alguns a se absterem de tomar um lado na disputa política. Em um outro canto do país, a pesquisa de Rosana Pinheiro Machado e Lucia Mury Scalco relatou a identificação política de jovens de uma periferia de Porto Alegre, imersos em um contexto de crescente violência, com um discurso de endurecimento da segurança pública nas eleições de 2018. O que esses exemplos demonstram é que eleitores de baixa renda, assim como mais ricos, podem tecer narrativas políticas a partir de outras dimensões que não sua posição de classe. Para além disso: essas outras identidades podem pesar na hora do voto mais do que considerações sobre o seu bem-estar material.

As narrativas e identidades políticas que os eleitores tecem não são estáticas, mas altamente contextuais. Elas variam de acordo com os diferentes pertencimentos e vivências dos eleitores, que são, por natureza, fluidos.

Ainda é cedo para prever se a pandemia será um fator que influenciará as próximas eleições presidenciais, mas é certo que tem sido um evento marcante para os brasileiros de todas as classes sociais. Isso especialmente para os eleitores de baixa renda, grupo de renda que, de acordo com as últimas pesquisas do Datafolha, mais relata ter medo de serem infectados pelo coronavírus, que em maior número apoia a implementação de medidas restritivas de circulação, e que mais relata praticar o isolamento social. Atitudes não sem razão diante dos números que apontam que os setores mais vulneráveis da população morrem desproporcionalmente pelo vírus.

O tratamento de Bolsonaro ao coronavírus como uma gripezinha e sua continua oposição a medidas de isolamento social vão, portanto, em direção contraria justamente aos anseios dessa população mais pobre. A depender da evolução da pandemia no Brasil, o posicionamento do governo frente a essa crise epidemiológica pode virar uma narrativa preponderante entre os eleitores mais pobres; ao que tudo indica, algo que já vem ocorrendo. Pesquisas de opinião do Datafolha mostram que a conduta de governadores e prefeitos frente à pandemia vem sendo muito mais bem avaliada pelos mais pobres do que a de Bolsonaro, mesmo com o auxílio-emergencial entendido como um benefício do governo federal.

Tudo isso mostra que é preciso ampliar esta conversa; não dá para simplificar o apoio dos eleitores de baixa renda apenas ao auxílio-emergencial. O bem-estar dos mais pobres não se define apenas pelas políticas de transferência de renda, nem sua visão política se resume somente ao seu bolso. A pandemia promete ser mais um fator relevante a entrar no radar político dos mais pobres também.

Mariana Borges é Cienstista Política. Bolsista de pesquisa do Prêmio de Pós-doutorado de Política no Nuffield College da Universidade de Oxford. Doutora da Universidade de Northwestern. Analisa especialmente o comportamento político, os partidos políticos e as eleições.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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