Democracia traz infelicidade no pequeno Butão

Brigas partidárias deixam parte da população com saudade de monarquia absoluta

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Joanna Slater
Chunje (Butão) | The Washington Post

É tempo de colheita neste vilarejo no oeste do Butão, e os moradores estão colhendo uma safra incomum: políticos fazendo promessas.

Um político prometeu pavimentar em três meses a estrada local, hoje uma via estreita de terra que percorre a margem de um rio. Outro disse que vai ampliar a escola primária local para que inclua o ensino secundário. Um terceiro político aconselhou a população a desconfiar do que prometeram os dois primeiros.

Butaneses chegam para votar em eleição no Butão no dia 18 de outubro - Diptendu Dutta/AFP

As famílias da cidadezinha estão divididas em torno de qual partido apoiar, e mensagens partidárias aparecem todos os dias nos celulares das pessoas em um aplicativo de mídia social chamado WeChat.

“O sistema antigo era muito melhor em matéria de paz, tranquilidade e harmonia”, comentou Chencho Dorji, 68 anos, colocando um feixo de arroz numa debulhadeira.

Pequeno país situado nos Himalaias, entre a Índia e a China, o Butão é famoso por sua localização geográfica isolada, paisagens deslumbrantes e devoção ao princípio da “Felicidade Nacional Bruta”, que procura equilibrar o crescimento econômico com outras formas de contentamento.

Agora a jovem democracia do país, nascida há apenas uma década, está recebendo uma dose forte da infelicidade que acompanha a política eleitoral. Nos meses que antecederam as eleições nacionais da quinta-feira, as primeiras em cinco anos, políticos trocaram insultos e derramaram promessas extravagantes.

As redes sociais fervilharam com alegações não comprovadas e campanhas para promover o medo em relação ao papel do Butão no mundo.

É o suficiente para levar alguns eleitores a sentir saudades do sistema anterior –uma monarquia absoluta regida por um rei amado pela população. “Eu queria que as coisas voltassem a ser como antes”, disse Karma Tenzin, 58 anos, sentado em seu apartamento na pitoresca capital do país, Timfu. “Seríamos mais felizes.”

O Butão é aproximadamente duas vezes maior que o estado de Nova Jersey, nos EUA, e é coberto de montanhas. Na cultura butanesa, que preza a união, a chegada da democracia foi recebida com ambiguidade.

“Estamos tristes com todas estas divisões sociais”, disse Dorji Penjore, que dirige o Centro de Estudos do Butão e da Felicidade Nacional Bruta, um think tank governamental. Para ele, a democracia “vai funcionar, mas haverá custos, naturalmente”.

Se algum país pudesse descobrir como ser uma democracia feliz, esse país seria o Butão. Muito tempo antes de a felicidade ser estudada em universidades americanas e virar parte do currículo de escolas primárias, o país já era líder em matéria de traçar políticas públicas que priorizam a satisfação de seus habitantes.

Essa filosofia ajudou esse país relativamente pobre, com 750 mil habitantes, a seguir um rumo singular em seu desenvolvimento econômico.

O Butão aceita turistas, mas procura limitar o número deles, impondo taxas compulsórias elevadas. Sua Constituição exige que pelo menos 60% de sua superfície conserve a cobertura florestal, e isso o converteu em um dos únicos países carbono negativos do mundo (ou seja, que mais remove do que lança dióxido de carbono na atmosfera).

O modo como são estruturadas as eleições no país também é atípico. Monges e monjas budistas e outros clérigos não podem votar, segundo o argumento de que devem se manter fora da política. Nenhuma atividade de campanha é permitida após as 18h.

Candidatos que forem flagrados difamando seus adversários ou mencionando determinados tópicos delicados –como a relação do Butão com a Índia, opressivamente estreita— são multados ou advertidos.

Butanês perto de cartazes eleitorais - Diptendu Dutta/AFP

Chega a ser difícil saber que há uma campanha eleitoral em curso, a julgar pelos sinais externos. Não há cartazes de campanha, exceto em murais de anúncios públicos, facilmente ignorados; não há ônibus cobertos de fotos de candidatos. Os slogans dos dois partidos –“Reduzindo a disparidade” e “Progresso com igualdade e justiça”—não chegam a ser incendiários.

Mas a campanha é intensa, apesar de as críticas difamatórias não chegarem a ser perceptíveis pelos padrões americanos. Os seguidores de um partido registraram uma queixa junto à Comissão Eleitoral nacional argumentando que seus adversários os haviam difamado –tinham descrito seu líder como sendo “muito papo e pouco conteúdo”. Outra queixa alegava que os seguidores de um partido acusaram o partido oposto de ser “antinacional”. Nos dois casos, a Comissão Eleitoral aplicou multas.

Como outras democracias pelo mundo afora, o Butão está tendo que lidar com o efeito das novas tecnologias sobre as eleições. É um desafio especialmente agudo em uma sociedade antes tradicional em que a televisão só chegou em 1999.

“O maior desafio que enfrentamos é o das redes sociais”, disse Sonam Tobgay, funcionário sênior da Comissão Eleitoral. Uma preocupação particular são os posts anônimos feitos por “pessoas sem rosto que criam desarmonia na sociedade”.

Sobre a mesa de Tobgay numa tarde recente estava uma carta do governo ao Facebook pedindo que a empresa suspendesse sete páginas usadas regularmente por seguidores dos dois partidos políticos que disputaram a eleição “para espalhar informações falsas e mensagens de ódio”.

O urologista Lotay Tshering é presidente do Druk Nyamrup Tshogpa (DNT), ou Partido Unido do Butão, um dos dois partidos que disputaram o segundo turno das eleições, na quinta-feira. Em um evento de campanha no início do mês, ele estava descrevendo os insultos que recebeu nas redes sociais –incluindo ser descrito como mentiroso e enganador— quando começou a soluçar.

“A emoção me sufocou; não pude continuar”, disse Tshering, em entrevista na terça-feira (16). “Tenho bastante certeza de que esses insultos são orquestrados por meus adversários.”

Seu rival, Pema Gyamtsho, preside o Druk Phuensum Tshogpa (DPT), Partido da Paz e Prosperidade do Butão. Também ele lamentou o fato de as redes sociais serem usadas na eleição para disparar insultos anônimos.

“Isso deve fazer parte do jogo, mas, numa sociedade pequena, não queremos isso”, disse Gyamtsho. “A divisão e desunião é algo que deveria preocupar a todos.”

Essas preocupações são ecoadas nas ruas de Timfu, uma capital nacional que não tem um único semáforo e cujos telhados nesta época do ano estão recobertos de pimentas vermelhas, colocadas ali para secar ao sol antes de ser armazenadas para o inverno. “Esses ativistas partidários vêm para a casa das pessoas e promovem sentimentos negativos”, comentou Dorji Pem, 66 anos, em um bairro da parte norte da cidade. “É tão irritante, a gente fica com a cabeça explodindo.”

Os pesquisadores da felicidade butaneses acreditam que a democracia está prejudicando o contentamento no país. Penjore, do Centro para o Butão, destacou que a última pesquisa quinquenal realizada no país, em 2015, identificou uma queda em dois dos nove indicadores usados para medir a Felicidade Nacional Bruta –o bem-estar psicológico e a vitalidade comunitária.

“Nossa intuição nos diz que a democracia teve um papel nisso”, falou Penjore. “Supomos que seja devido à política partidária.”

Ele explicou que alguns aspectos da democracia entram em choque com elementos da cultura butanesa, profundamente influenciada pelos preceitos budistas. O fato de que os candidatos precisam ostentar seus pontos fortes e criticar seus adversários é desconcertante para a geração butanesa mais velha, segundo Penjore. Mas “na democracia, ser humilde significa cometer suicídio eleitoral”.

Mesmo assim, eleitores e políticos butaneses estão mudando seus hábitos, e alguns estão até gostando. Numa tarde recente, Phub Tshering, candidato do DPT a uma cadeira no Parlamento do Butão, começou a fazer sua última campanha de porta em porta, em Chunje, vilarejo situado a 19 km ao norte da cidade de Paro.

Ele caminhou alegremente por campos de arroz recém-colhido, à sombra de encostas montanhosas em tons de verde, ocre e cinza. Seu irmão, assessor informal de campanha, distribuía saquinhos de noz de areca envolta em folhas de bétele, um estimulante leve que deixa os dentes avermelhados quando é mastigado.

Em todo o país, as questões mais importantes em jogo eram o desemprego e a saúde. Mas os eleitores de Chunje estavam preocupados com a escassez de água potável, maneiras de manter javalis selvagens longe dos arrozais e a condição deteriorada da estrada que leva ao vilarejo.

O verdadeiro problema, segundo Tshering, era que seu adversário do DNT havia contado “muitas mentiras”. Tantas falsidades haviam sido divulgadas, segundo ele, que era “hora de um contra-ataque de minha parte”.

Entrando no carro a caminho de sua escala seguinte na campanha, ele se despediu em tom alegre: “Sejam felizes!”.

Tradução de Clara Allain