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Descrição de chapéu Eleições EUA 2020

Aos 77, Biden usa superação pessoal para convencer que pode tirar EUA da crise

Democrata se coloca como único capaz de unir país dividido por Trump e assolado pela pandemia

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Washington

​Embaixo de uma luminária em sua mesa de trabalho, Joe Biden tem uma tira em quadrinho do personagem Hagar, o Horrível, que pergunta a Deus: "Por que eu?". A resposta vem de dentro de uma nuvem sobre a cabeça do viking: "Por que não?".

Desenhada na década de 1970, a charge explica a maneira como o ex-vice de Barack Obama tem encarado a missão de ser o candidato democrata à Casa Branca no momento em que os EUA enfrentam uma das maiores crises de sua história.

Aos 77 anos, com quase meio século na vida pública, Biden se coloca como o único líder capaz de unir o país dividido por Donald Trump, em meio a uma pandemia que já matou mais de 170 mil pessoas nos EUA.

Nesta quinta-feira (20), Biden faz seu discurso na última noite da convenção democrata, em que vai usar sua história de vida para se apresentar como a melhor alternativa em tempos sombrios.

Joe Biden sorri em fala durante evento em Delaware, estado pelo qual foi eleito senador seis vezes consecutivas - Andrew Caballero-Reynolds - 28.jul.2020/AFP

O democrata, dizem aliados, não queria o posto de candidato à Presidência neste momento, mas afirma que sua trajetória pessoal de dor e superação pode conectá-lo aos eleitores, fazendo-o responsável por aceitar o desafio.

A narrativa é de que Biden conseguiu se reerguer mesmo depois de ter perdido sua primeira mulher e uma filha num acidente de carro em 1972 e, quatro décadas depois, um filho, vítima de câncer no cérebro.

Com experiência e empatia com a dor do povo americano, argumenta a campanha democrata, Biden também pode reconstruir os EUA em um de seus momentos de maior dificuldade.

Joseph Robinette Biden Jr. nasceu em Scranton, na Pensilvânia, em novembro de 1942, e, caso seja eleito, será o presidente mais velho a tomar posse nos EUA, com 78 anos em janeiro.

Mudou-se para Delaware em 1953, estado por onde se elegeu pela primeira vez ao Senado em 1973, e foi reeleito seis vezes consecutivas.

Aos 30 anos, quando estreava em Washington como um dos senadores mais jovens da história do país, sua mulher, Neilia, também com 30 anos, e sua filha mais nova, Naomi, de pouco mais de um ano, morreram em um acidente de carro ao voltar das compras de Natal.

Seus outros dois filhos, Robert Hunter, 2, e Joseph Beau, 3, tiveram ferimentos graves, mas sobreviveram.

Arrasado, Biden quis abandonar a política, mas colegas de Congresso aconselharam que ele se afundasse no trabalho para tentar superar o sofrimento e recomeçar.

O democrata seguiu a rota e remodulou sua vida pessoal e política. Superou parte da gagueira que o acompanhava desde cedo, tornou-se mais empático com os problemas das pessoas e assumiu cargos em comissões importantes no Senado, como nos comitês do Judiciário e de Relações Exteriores —experiência que, mais para frente, seria credenciadora para sua indicação ao posto de vice de Obama, em 2008.

Entre outras atuações parlamentares, foi autor da Lei de Violência Contra as Mulheres e ajudou a aprovar a Lei de Controle de Crimes Violentos e Execução da Lei, esta, porém, Biden disse considerar "um grande erro" depois de críticas da esquerda democrata.

As disposições duras dessa legislação se chocam hoje com os protestos de rua contra o racismo e a violência policial e com a demanda progressista de uma reforma no sistema criminal americano.

Em 1977, Biden casou-se com Jill Tracy, professora de inglês com quem teve mais uma filha. Conheceram-se em um encontro às cegas armado pelo irmão de Biden e estão juntos até hoje.

Dez anos depois do novo casamento, Biden decidiu concorrer à Presidência dos EUA pela primeira vez, mas sua campanha foi enterrada após o democrata ter sido acusado de plágio ao incorporar partes de um discurso de um político britânico a uma de suas falas públicas.

O episódio veio à tona junto com informações de que Biden também teria copiado 5 das 15 páginas de um artigo jurídico durante seu período como estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Syracuse.

Sob a pecha de trapaceiro, desistiu da disputa, admitindo erros, mas insistindo que as críticas haviam sido muito duras.

Antes de entrar para o Partido Democrata, Biden chegou a trabalhar em um escritório de advocacia e, no fim da década de 1960, registrou-se como eleitor independente, ou seja, que não é ligado a nenhum partido.

Dizia não gostar do candidato republicano à Casa Branca na época, Richard Nixon, que comandou o país de 1969 a 1974, mas juntou-se aos democratas logo depois, em um grupo que se propunha a renovar o partido.

Hoje, Biden é centrista e representante da velha guarda democrata, que disputa a arena política com progressistas como o senador Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez.

Negociador contumaz, Biden não abandonou a ideia de que é preciso construir pontes com todos os lados da política americana mesmo em um cenário de extrema polarização.

Desde abril, quando Sanders desistiu da disputa e deixou o caminho aberto para sua nomeação como candidato, Biden tem distensionado a relação com a esquerda de seu partido ao mesmo tempo em que atrai eleitores independentes e republicanos moderados que votaram em Trump em 2016.

Biden estava com uma campanha desacreditada no início do ano, com desempenho ruim nas primeiras prévias, mas recuperou fôlego impulsionado pelos eleitores negros, que o levaram a uma vitória acachapante nas prévias da Carolina do Sul.

Depois disso, o establishment democrata se uniu a favor dele, e Sanders viu que não tinha chances de prosseguir.

O amplo arco eleitoral tem mantido o ex-vice de Obama à frente nas pesquisas nacionais e em estados-chave —em algumas delas, por margem de quase dez pontos percentuais.

Para vencer em novembro, Biden sabe que, além dos eleitores jovens e negros, precisa conquistar moderados e independentes que votaram em Obama duas vezes, mas, em 2016, dizendo-se cansados da política tradicional, optaram por Trump.

O principal alvo do democrata é a má condução do atual presidente diante da pandemia.

Biden tem tentado se diferenciar do republicano ao evitar aglomerações, usar sempre máscara quando está em público e defender a ciência como melhor forma de encontrar as soluções para a crise.

A questão da saúde pública sempre foi uma bandeira de Biden. Ele ajudou na aprovação do Obamacare, lei federal que ampliou o acesso de todos os americanos ao sistema de saúde, e diz que seu filho Beau, que morreu em 2015, ganhou sobrevida ao tratar um câncer porque tinha plano de saúde.

Esta é a terceira vez que Biden tenta concorrer à Casa Branca. Depois do escândalo de plágio que acabou com suas expectativas em 1987, tentou de novo em 2007, mas desistiu ainda em janeiro, por não conseguir decolar nas pesquisas.

Em 2016, pouco depois da morte do filho, não quis disputar a nomeação e apoiou Hillary Clinton.

A relação entre Obama e Biden é outro trunfo importante da campanha democrata. Eles são grandes amigos, apesar de o ex-vice reconhecer que só conseguiu o posto em 2008 pela conveniência.

Obama, o primeiro presidente negro da história dos EUA, precisava de um homem branco ao seu lado, e com experiência em temas de segurança nacional e política externa —caros entre os americanos e sobre os quais Obama tinha pouco conhecimento.

Biden e Obama se abraçam após discurso de despedida do democrata da presidência - Nicholas Kamm - 10.jan.2017/AFP

Biden foi um vice bastante ativo e trabalhou em áreas como imigração da América Latina. Aprovou no Congresso o envio de recursos a El Salvador, Honduras e Guatemala e conseguiu assim diminuir o fluxo da primeira onda de imigrantes sem documentos que tentavam entrar nos EUA.

Repetia que, caso melhorasse a vida das pessoas na América Central, talvez elas não quisessem tentar uma vida incerta em território americano.

Neste ano, foi a vez de Biden fazer a opção calculada e conveniente. Escolheu a senadora Kamala Harris (pronuncia-se Kâmala) como vice na sua chapa e uniu o perfil de dois grupos de eleitores que serão determinantes na disputa de 3 de novembro: mulheres e negros.

Biden havia anunciado, já em meados de março, que nomearia uma mulher para ajudá-lo no desafio de derrotar Trump, e os protestos antirracismo após o assassinato de George Floyd —um homem negro asfixiado por um policial branco em Minnesota— fizeram com que a representação da população negra se tornasse imperativa para a sua chapa.

Além de acenar para a representatividade exigida pela ala progressista dos democratas, a escolha de uma mulher também teve o objetivo de minimizar as acusações de abuso sexual das quais Biden é alvo por parte de Tara Reade, sua ex-assessora no Senado.

Ele nega as acusações sobre um episódio que ocorreu, segundo Reade, em 1993 —ele a teria encurralado na parede e a penetrado com os dedos.

Além da acusação de assédio, Biden enfrenta também inúmeras críticas sobre gafes ou erros em seus discursos públicos.

Um dos principais aconteceu em sua campanha à Casa Branca de 2007, quando disse que o motorista que estava no carro que causou o acidente que matou sua mulher e filha estava embriagado, sem haver provas sobre isso.

Sua ligação com a classe trabalhadora, que herdou do pai, Joseph, e os ensinamentos da Igreja Católica que aprendeu com a mãe, Catherine, são também predicados que Biden cultiva para conquistar eleitores religiosos e do Meio-Oeste que preferiram Trump em 2016.

Como afirma acreditar que sua missão é circunstancial —era o único nome do partido capaz de unir o establishment democrata e ter o apoio incondicional de Obama—, Biden tem se colocado como um possível presidente de transição.

Se for eleito, promete tirar o país da crise que diz ter sido aprofundada por Trump e conduzir os americanos para uma nova era de conciliação.

A reeleição em 2024 não parece estar em seus planos. Mas, como é lembrado todos os dias pela tirinha do Hagar em sua mesa, as coisas podem sempre mudar e ele pode ter que se perguntar de novo: 'por que eu?'

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