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Pandemia acentuou autoridade de criminosos onde o Estado é ausente, afirma professor

Grupos na América Latina buscaram legitimidade ao fornecer alimentos e remédios para populações vulneráveis, diz pesquisador da Universidade Barnard (EUA)

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Rio de Janeiro

Em um momento de especial vulnerabilidade devido à pandemia da Covid-19, grupos criminosos ocuparam o lugar do Estado em busca de legitimidade e autoridade nas comunidades sob o seu domínio, afirma o cientista político americano Eduardo Moncada, 42.

Essa estratégia foi adotada por meio do fornecimento de alimentos e remédios e pela facilitação do acesso a médicos, entre outros tipos de auxílio. Segundo o pesquisador, que é professor da Universidade Barnard (EUA) e especializado na economia política do crime, esse comportamento foi observado em grupos criminosos no Rio de Janeiro, em partes do México e da Colômbia.

Integrante de milícia indígena formada para combater o crime organizado passa em frente a pichação que pede a saída de matadores na cidade de Pantelho, no estado de Chiapas, no México - Jacob Garcia - 27.jul.21/Reuters

Em entrevista à Folha por videoconferência, Moncada também explica de que formas a pandemia afetou o desenvolvimento de atividades ilícitas, e como essas mudanças impactaram as sociedades como um todo.

Com o fechamento das fronteiras e a redução do comércio global, por exemplo, traficantes tiveram dificuldade de exportar cocaína, o que reduziu seu preço nos países produtores e aumentou nos importadores, como os Estados Unidos, que ficaram sem estoque. Segundo o professor, esse novo cenário de valorização do produto poderia representar um risco de aumento da criminalidade nos países que compram a droga, com gangues mais motivadas a defender seus territórios.

Quais estratégias os grupos criminosos utilizaram durante a pandemia para solidificar seus territórios e seu controle sobre populações vulneráveis? Temos algumas evidências que sugerem que grupos criminosos em partes do Rio, México e Colômbia usaram a pandemia para construir autoridade e legitimidade. Um jeito de fazer isso é: se a população no seu território precisa de algo, e o Estado não está fornecendo, você fornece. Talvez seja segurança e proteção contra o crime, que é algo que esses grupos fazem no Rio há muito tempo, assim como as milícias. Mas talvez você dê comida, remédios, acesso a médicos locais, transporte para os hospitais.

O que isso significa a longo prazo? Pode ser que populações que já se sentiam marginalizadas pelo governo se lembrem que nesse momento de necessidade quem apareceu para ajudar não foi o Estado, os políticos, mas talvez os líderes da criminalidade local. Isso tem implicações interessantes. Em quem você acredita? Quanta confiança você tem no Estado?

No Rio também surgiram relatos sobre chefes do tráfico impondo medidas de distanciamento social em algumas favelas. Vimos algo similar em partes de El Salvador. Gangues avisavam as pessoas por WhatsApp que elas só poderiam sair de casa uma de cada vez, em determinadas horas. Parte disso é saúde pública, para manter a comunidade segura, mas também é interesse pessoal dos grupos criminosos. Se você precisa da população saudável para que eles possam trabalhar e você possa extorqui-los, a última coisa que você quer é que parte da comunidade fique doente.

Como o governo deveria agir, então, para prevenir que os grupos criminosos tomem o controle de novos territórios? A resposta clássica dos governos na América Latina é mais polícia e policiamento mais duro. As últimas décadas nos ensinaram que isso não funciona, não é uma solução muito efetiva ou sustentável.

Uma opção, e isso é difícil durante a pandemia, devido ao impacto econômico e fiscal, é começar a criar novos laços com as comunidades controladas por grupos criminosos, investindo dinheiro público no saneamento, nas escolas locais, fornecendo ajuda emergencial para as famílias. É quase uma forma de competir com esses grupos pela lealdade da população.

O cientista político Eduardo Moncada, professor na Universidade Barnard (EUA) - Arquivo pessoal

O senhor escreveu um artigo sobre as consequências da pandemia para a atividade criminal na América Latina. O que vimos acontecer no início, no primeiro semestre de 2020? Pelo menos na primeira onda da pandemia, em partes da América Latina e outras partes do mundo, vimos uma diminuição nos níveis de violência. Embora seja importante lembrar que há formas de crimes dentro dos domicílios que aumentaram, como a violência de gênero e abuso doméstico.

Negócios fecharam, as pessoas ficaram em casa, reduziram-se as oportunidades para que grupos criminosos cometessem crimes públicos, como roubos. Mas isso só durou por um curto período de tempo, até que as pessoas passaram a ficar inquietas em casa, os governos não necessariamente determinaram lockdowns, então as taxas de crimes voltaram a subir.

A lentidão na economia afetou as atividades ilícitas? Uma das coisas interessantes sobre o crime organizado na América Latina é que o senso comum é de que tudo é sobre os cartéis de drogas. Sim, há importantes cartéis na região, mas muitos diversificaram as economias nas quais trabalham, com exploração madeireira, tráfico de animais, imigração clandestina, tráfico sexual.

Nessas economias ilegais você precisa transportar coisas ou pessoas entre fronteiras, e isso se torna muito difícil se o comércio global está reduzido, se as fronteiras estão fechadas. É mais difícil produzir drogas se os químicos que você precisa para produzir metanfetamina não podem ser enviados da Ásia para partes do México, por exemplo.

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Sem as substâncias que vinham da China para produzir as drogas, o que esses grupos passaram a fazer para lucrar? Não temos muitas evidências, mas um jeito potencial de adaptação é se voltar para outras economias ilícitas. Podem ter começado a extorquir, ou extorquir mais, de negócios locais, de agricultores. Para garantir que teriam receita para pagar seus membros, armas, munição, veículos, propina. Essa redução global no comércio, que teve um efeito na produção das drogas, também tem um efeito doméstico em partes da América Latina. Grupos criminosos tiveram que se tornar mais predatórios contra suas comunidades para poder sobreviver.

O senhor apontou no seu estudo que durante a pandemia houve redução do preço da cocaína na América Latina, mas aumento nos Estados Unidos. Como essa mudança pode afetar a criminalidade? É importante manter em mente a conexão entre a América Latina e os Estados Unidos e a Europa. Eles são muito conectados nas suas economias legais, mas também nas ilegais. Durante a pandemia o produto não pôde mais ser enviado para fora, então vimos um excesso no mercado das folhas de coca, o que reduziu o preço para os produtores. Isso pode ter um efeito negativo para aquela população, porque agora não estão aptos a gerar receita a partir das folhas, e talvez tenham que se voltar para outro tipo de economia, lícita ou ilícita.

Nos Estados Unidos, você reduziu a oferta, mas ainda há demanda. Talvez uma demanda até maior durante a pandemia, com muita depressão e estresse mental. Por isso o preço começa a subir. Qualquer produto que estiver disponível em estoque vai ser muito mais valioso, e assim os grupos criminosos que vendem drogas terão mais incentivos para proteger seus territórios, e eliminar seus competidores. Isso gera a possibilidade de os mercados de drogas se tornarem mais violentos nos EUA, se essa dinâmica permanecer.

No longo prazo, quais as consequências da pandemia para a atividade criminal no continente? A América Latina é uma das regiões mais desiguais do mundo, e as ciências sociais nos ensinaram que a desigualdade costuma estar relacionada ao crime. A pandemia agravou esses níveis, arrastou as pessoas de novo à pobreza, e colocou muita pressão no orçamento dos governos na região. Se a desigualdade persistir nos próximos anos devido à pandemia, é provável que a gente veja os níveis de criminalidade crescendo.

O senhor também alertou sobre o uso das Forças Armadas na imposição da quarentena. Em quais países isso ocorreu e qual o risco para a democracia? A América Latina tem uma longa história de envolvimento das Forças Armadas na política, com comportamentos opressivos e antidemocráticos. A pandemia ressaltou algo que já estava acontecendo, com políticos e governos se voltando aos militares, ainda vistos com muita confiança e legitimidade. Os políticos têm dificuldade de estabelecer legitimidade, e uma saída é trazer as Forças Armadas.

Durante a pandemia vimos isso em partes da América Central, Honduras, El Salvador, onde presidentes se voltaram para as Forças Armadas para impor medidas de distanciamento social e atuar no policiamento diário, coisas que não estão treinadas para fazer. Elas são treinadas para ir à guerra.

Uma das implicações é que quanto mais vemos as Forças Armadas se envolvendo, mais é provável ver abusos de direitos humanos, e impunidade quando cometem esses abusos. A longo prazo, é muito perigoso para a democracia ter os militares tornando-se atores com ainda mais legitimidade e influência na arena política.


RAIO-X

Eduardo Moncada, 42
Professor de ciência política na Universidade Barnard (EUA), tem doutorado pela Universidade Brown e é autor de “Cities, Business, and the Politics of Urban Violence in Latin America”, de 2016.

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