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Com guerra e Covid, Ucrânia assiste a duas crises sanitárias sobrepostas

Pandemia virou alvo de disputa geopolítica com a Rússia, e somente 35% estavam imunizados quando invasão começou

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O emaranhado de consequências humanitárias deflagradas pela guerra na Ucrânia inclui inúmeros impactos no setor da saúde —hospitais destruídos, centenas de mortos e feridos e precárias condições de vida. A situação se agrava caso levado em conta o fato de que a pandemia de coronavírus não acabou, e o país do Leste Europeu era um dos que pior caminhava no combate à Covid em toda a Europa.

A guerra, por óbvio, fez com que as autoridades nacionais de saúde deixassem de reportar números da crise sanitária. Pelo menos desde 25 de fevereiro —um dia após a invasão do país pela Rússia— não há mais a disponibilização de dados atualizados sobre a doença, confirma à Folha a plataforma Our World in Data, da Universidade Oxford, referência mundial na coleta de dados globais sobre a doença.

Mulher usando máscara de proteção olha pela janela de um ônibus em Kramatorsk, na Ucrânia - Valentyn Ogirenko - 26.nov.21/Reuters

Quando viu estourar a guerra, a Ucrânia vivia a quinta onda da pandemia, ainda que as médias de casos e óbitos começassem a cair. Com histórico de hesitação vacinal, pouco acesso a imunizantes e ampla disputa geopolítica em torno da vacina, era um dos países europeus menos vacinados: somente 35% dos 44 milhões de habitantes haviam completado o primeiro esquema vacinal.

Agora, o país vive duas crises sanitárias sobrepostas, diz Eliseu Alves Waldman, epidemiologista e professor da USP. "Por um lado, a infraestrutura de saúde foi abalada, boa parte dos recursos humanos se transformou em refugiados e há, ainda, questões de saúde mental", explica. "Por outro, há um processo de movimentação populacional intenso, com alojamentos precários e sem ventilação, ambientes favoráveis à transmissão de doenças respiratórias [como a Covid]."

A campanha vacinal ucraniana começou atrasada —na última semana de fevereiro do ano passado, quase dois meses após o início oficial da imunização nos países da União Europeia (UE), bloco que Kiev almeja integrar. O país se preparava para autorizar a vacinação de crianças de 5 a 11 anos quando veio a invasão. Numa tentativa tardia de alavancar os índices, o governo de Volodimir Zelenski chegou a recompensar monetariamente os que escolhiam receber a vacina.

Por meio do programa ePidtrimk (apoio epidemiológico), maiores de 14 anos vacinados tinham direito a 1.000 grívnias (R$ 166), valor que poderia ser usado para compra de livros, ingressos para cinema e teatro, transporte público e medicamentos. O índice de vacinados deu salto modesto, de 33,1% para 34,6%, um mês após a implementação da estratégia, que duraria até dezembro deste ano.

Assim como faz agora para barganhar ajuda logística, militar e econômica para enfrentar as tropas russas em seu território, Zelenski pediu diversas vezes apoio europeu para garantir acesso a vacinas —e frustrou-se em muitas ocasiões. O país realizou parcerias com farmacêuticas chinesas e também recebeu doses por meio do mecanismo Covax, liderado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), mas sempre em volume insuficiente para a cobertura vacinal.

Com dezenas de milhares de tropas estacionadas na fronteira àquela altura, a Rússia também entrou na seara vacinal. Quando Zelenski penava para conseguir imunizantes, o deputado e oligarca pró-Moscou Viktor Medvedchuk, amigo de longa data de Vladimir Putin, visitou o líder russo e costurou um acordo de transferência de tecnologia da vacina russa Sputnik para uma farmacêutica ucraniana baseada em Kharkiv, cidade hoje bombardeada por tropas russas.

Kiev, então, lançou um decreto que proibiu o registro de vacinas produzidas na Rússia. Autoridades do país, incluindo o presidente, diziam tratar-se de uma arma híbrida da Rússia contra a Ucrânia, para prejudicar e desmoralizar o governo local. Moscou, por meio de canais de TV alinhados, retrucava que Zelenski permitia que os ucranianos morressem por uma insistente recusa de usar remédios do inimigo.​

O cenário precário de combate à Covid faz com que boa parte da população não esteja minimamente protegida contra os quadros graves da doença. E a leva de refugiados do conflito —2,1 milhões, segundo os dados mais recentes das Nações Unidas— migra principalmente para países da vizinhança que não são exemplo no quesito imunização.

A Polônia, para onde já foram 1,3 milhão dos refugiados, tem 58,8% de vacinados. A Hungria, destino de 203 mil, vacinou 64%. A Rússia, para onde migraram 100 mil, não chega a 50%. Já Moldova, destino de 82 mil, tem tímidos 26% com primeiro esquema vacinal completo.

Esse cenário acrescenta mais uma camada de preocupação à assistência de saúde que deve ser oferecida aos refugiados. Henry Rodriguez, chefe do projeto dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Roraima, voltado para refugiados venezuelanos, diz que os governos terão de organizar amplos sistemas de triagem, priorizando mulheres grávidas, crianças e aqueles com doenças crônicas.

Ele, que também trabalhou em outras missões com imigrantes ao redor do mundo, acrescenta que a atuação de organizações internacionais, como o próprio MSF ou a Cruz Vermelha, será fundamental para descongestionar os sistemas de saúde locais, que tendem a ficar novamente sobrecarregados.

Waldman, da USP, diz que será preciso priorizar a saúde materno-infantil —mulheres e crianças, afinal, são a maioria dos refugiados desse conflito. E destaca a importância de monitorar a situação vacinal dos que chegam para impedir não apenas novos surtos de Covid, mas também de outras doenças transmissíveis.

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